sábado, 27 de março de 2010
submersão
“ Terminarás de ler este livro nesta casa e dela não sairás viva”, assim começava o sonho, ou pelo menos a parte que começou a recordar quando acordou, aquele trecho vívido que acabava por lhe estragar as manhãs, por vezes dias inteiros, depois de uma noite a transpirar pesadelos.
O que parecia ser um livro havia sido encontrado na casa praticamente vazia de objectos na qual se preparava para passar alguns dias de férias, longe do bulício da cidade e do trabalho. Uma empreitada de leitura e sono, era o projecto para se recompor, acreditava.
Na verdade, assemelhava-se mais a um grande caderno de notas com capa dura e aquele era o primeiro recado, a força das palavras manuscritas engrossava a ameaça. O sonho não contemplou as restantes páginas, vazias ou cheias?
Mas os dias passaram com rapidez e inconsequência no tempo condensado dos sonhos, a neblina do medo não chegou a instalar-se, apenas o fumo pouco espesso de preocupação se interpunha amiúde entre as coisas, mais como uma má recordação do que como algo iminente.
A temporada de descanso esgotou-se e era hora de partir. Num último impulso, resolveu levar consigo o livro oráculo, como uma lembrança irónica e mórbida a seu gosto, mas não o encontrou. Se atribuiu ao facto algum significado, não se recorda.
Às vezes é bom acordar.
bso Silêncio
sábado, 13 de março de 2010
certo
domingo, 22 de novembro de 2009
mundo pequeno
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
diagnóstico pré-natal
Há dois seres que ensombram as palavras: um nado morto e um deficiente profundo. As palavras têm vida, ou a promessa dela, mas é rara a que vinga, é rara a palavra sobrevivente.
bso In the kingdom of the blind... by Dead Can Dance
Marcadores:
1 mudança de estação
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
desejo nómada
Porque há horas do dia em que só nos apetece fugir. Porque todos devíamos ser capazes de um pouco de magia, de um gesto alquímico que transforme a merda em ouro.
bso Golden Brown by The Stranglers
Marcadores:
1 dia de cão
quinta-feira, 3 de setembro de 2009
criação
Hoje dei por mim, no trânsito sonolento de início de dia, a pensar que é muito possível que acredite em deus. Como um pai general, severo e controlador, que desrespeitamos e afrontamos todos os dias, negando-lhe qualquer gesto de aproximação, qualquer ensejo de convivência. O pai do qual queremos ser órfãos nas fantasias delirantes e parricidas de certas infâncias. Ou do qual sentimos a nostalgia no abandono de outras. Depois, resolvi devolver deus à sua mansão de probabilidades, longe das minhas inquietações. Ao arrancar com o carro, matei um pombo.
bso The Host of Seraphim by Dead Can Dance
Marcadores:
1 imagem
sexta-feira, 28 de agosto de 2009
surpresa
quinta-feira, 6 de agosto de 2009
D. ou O amor é uma frágil biblioteca
Hoje adjectivo-te de terrorista, porque me sorris gentilmente enquanto me fazes o coração em pedaços. O meu espírito infantil acredita sempre e, por isso, é capaz de esperar toda a vida, mas não compreende os jogos de avanço e recuo. Quando julgo ter um vislumbre de algo bom, isso é só o perfume fugaz que esconde a fetidez do vazio que se adivinha. Dizer que partilhar este amor contigo é nascer uma segunda vez, é certamente exagero. É nascer, apenas. Porque da primeira vez não guardo qualquer memória e, a guardá-la, seria sempre traumática como deve ser o primeiro embate no mundo. Também esta cidade já teve para mim vários nomes, alguns muito pouco lisonjeiros, depois de ela me ter ofendido e ferido. Epítetos acabados, resultado de certezas. De agora em diante, depois de finalmente se ter decidido a prodigalizar-me alguma generosidade, porque nela nos conhecemos e começámos a amar-nos, esta cidade será baptizada com a inicial do teu nome e a minha incerteza mora toda nela. E se o nosso amor é uma biblioteca de livros raros, as sombras que sobre ela aparentemente pairam são apenas a garantia mais elementar de protegê-la e perpetuá-la. Como quem nesse espaço solta morcegos para aplacar a fúria devoradora das traças pelo papel e pela pele macia das encadernações.
bso Her eyes are underneath the ground by Antony & The Johnsons
Marcadores:
1 paixão
terça-feira, 4 de agosto de 2009
quinta-feira, 30 de julho de 2009
i'm your fan
Perante ele, os adjectivos são redundantes. Cresci a ouvi-lo e a lê-lo, a sua música é parte dos meus gostos mais indeléveis e eternos e as suas palavras aproximações a muitas das minhas verdades. Esta noite, mais do que nunca, o concerto será comovente, pois estarei com a única pessoa que compreende na medida exacta o que acabei de escrever.
bso Waiting for the miracle by Leonard Cohen
Marcadores:
1 concerto
domingo, 5 de julho de 2009
aritmética prática
na cauda do tufão
Se eu ficar parada, de respiração suspensa e olhar fito não sei em que acontecimentos que já foram, passará o olho da tempestade por cima de mim sem causar danos? Porque não lhe dou a atenção exagerada que os fenómenos naturais exigem dos homens, esperar-me-á apenas a acalmia, o alívio, a certeza de que a sementeira não foi danificada, pelo que a necessidade e a fome não virão?
bso Youpi by Cornu
A8 Km 30
A morte seduz-nos numa acrobacia de cambalhotas de encher o olho. Por pouco, quase pensávamos que não seria mau morrer. As burocracias do acidente demovem-nos da intenção, mas a sugestão ficou feita e a dúvida instalou-se para sempre. De agora em diante, há duas possibilidades: viver ou não.
bso Behind the wheel by Depeche Mode
fragilidades
Contigo, sou o animal que vira a barriga para cima oferecendo-se ao afago, que estica o pescoço ao beijo e fica indolente de ternura. No mundo dos homens, o ventre é exposto à faca, a nuca ao disparo da execução sumária e o coração a todas as traições. Se nada mais houvesse a agradecer-te, eu cingir-me-ia ao seguinte: obrigada por me devolveres à minha natureza de bicho.
bso The air I breathe by Badmarsh + Shri
Marcadores:
1 agradecimento
domingo, 28 de junho de 2009
que princípio e que fim?
Vivo porque a lembrança de viver é a maior de todas. Por hábito, por não conhecer outra coisa. E por medo, claro. Cultivo a religião da memória, a luta entre desprendimento e gravidade, a sacralização do "mais ou menos", do "nem por isso" e de todas as outras fórmulas que nos colocam na mediania do ser. Como quem sobe um escadote alto, eu tento agora ver a vida de cima, mas a vertigem recorda-me a queda. E cada degrau tremente as antigas inseguranças. E cada insegurança uma memória de dor. E a dor o hábito. Eu sou aquela velha e estúpida serpente que morde a própria cauda e se repete até à náusea.
bso Just like heaven by The Cure
Marcadores:
1 triste constatação
segunda-feira, 15 de junho de 2009
exaustão
Eu quero uma licença de dormir,
perdão para descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
Adélia Prado
bso Blind by Hercules and Love Affair
Marcadores:
1 pedido
segunda-feira, 18 de maio de 2009
emboscada
Neste fim-de-semana, os meus cinco sentidos tiranos, que habitualmente se recusam a trabalhar em conjunto, confabularam para me fazer feliz e satisfazer-me o capricho da tranquilidade, o luxo da paz. Houve música cantada por nós, sabores de bebidas loucas, morangos, a tua pele sempre por perto para eu tocar e os teus olhos repousados em mim para eu poder olhar para dentro deles. E o perfume foi o das mais doces evocações. Quanto ao sexto sentido, diz-me que no dia em que partires a MPB terá mudado para sempre.
bso Por toda a minha vida por Elis Regina
Marcadores:
1 dia bom + 1 dia bom + 1 dia bom
domingo, 10 de maio de 2009
misérias
sexta-feira, 8 de maio de 2009
pedagogia
quarta-feira, 6 de maio de 2009
bastidores
Não vou mentir, os meus olhos continuam tristes. Por isso me escondo. Quem sabe ver-te pudesse substituir a cosmética?
bso Hearing the time by Eleni Karaindrou
Marcadores:
1 desabafo
Assinar:
Postagens (Atom)