domingo, 22 de novembro de 2009

mundo pequeno


Eu sou meridiano e tu o trópico que me intersecta. Qualquer coordenada nos serve, qualquer latitude é feliz.

bso Canto em qualquer canto by Mónica Salmaso

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

diagnóstico pré-natal


Há dois seres que ensombram as palavras: um nado morto e um deficiente profundo. As palavras têm vida, ou a promessa dela, mas é rara a que vinga, é rara a palavra sobrevivente.

bso In the kingdom of the blind... by Dead Can Dance

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

desejo nómada


Porque há horas do dia em que só nos apetece fugir. Porque todos devíamos ser capazes de um pouco de magia, de um gesto alquímico que transforme a merda em ouro.

bso Golden Brown by The Stranglers

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

criação


Hoje dei por mim, no trânsito sonolento de início de dia, a pensar que é muito possível que acredite em deus. Como um pai general, severo e controlador, que desrespeitamos e afrontamos todos os dias, negando-lhe qualquer gesto de aproximação, qualquer ensejo de convivência. O pai do qual queremos ser órfãos nas fantasias delirantes e parricidas de certas infâncias. Ou do qual sentimos a nostalgia no abandono de outras. Depois, resolvi devolver deus à sua mansão de probabilidades, longe das minhas inquietações. Ao arrancar com o carro, matei um pombo.

bso The Host of Seraphim by Dead Can Dance

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

surpresa


Sim, o vinho também se transforma em água. Milagre que é milagre acontece justamente ao contrário do que temos como certo.

bso Everybody Hurts by REM

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

D. ou O amor é uma frágil biblioteca


Hoje adjectivo-te de terrorista, porque me sorris gentilmente enquanto me fazes o coração em pedaços. O meu espírito infantil acredita sempre e, por isso, é capaz de esperar toda a vida, mas não compreende os jogos de avanço e recuo. Quando julgo ter um vislumbre de algo bom, isso é só o perfume fugaz que esconde a fetidez do vazio que se adivinha. Dizer que partilhar este amor contigo é nascer uma segunda vez, é certamente exagero. É nascer, apenas. Porque da primeira vez não guardo qualquer memória e, a guardá-la, seria sempre traumática como deve ser o primeiro embate no mundo. Também esta cidade já teve para mim vários nomes, alguns muito pouco lisonjeiros, depois de ela me ter ofendido e ferido. Epítetos acabados, resultado de certezas. De agora em diante, depois de finalmente se ter decidido a prodigalizar-me alguma generosidade, porque nela nos conhecemos e começámos a amar-nos, esta cidade será baptizada com a inicial do teu nome e a minha incerteza mora toda nela. E se o nosso amor é uma biblioteca de livros raros, as sombras que sobre ela aparentemente pairam são apenas a garantia mais elementar de protegê-la e perpetuá-la. Como quem nesse espaço solta morcegos para aplacar a fúria devoradora das traças pelo papel e pela pele macia das encadernações.

bso Her eyes are underneath the ground by Antony & The Johnsons

terça-feira, 4 de agosto de 2009

salvação


A justiça é o outro.

bso Bem querer por Chico Buarque & Maria Bethânia

quinta-feira, 30 de julho de 2009

i'm your fan


Perante ele, os adjectivos são redundantes. Cresci a ouvi-lo e a lê-lo, a sua música é parte dos meus gostos mais indeléveis e eternos e as suas palavras aproximações a muitas das minhas verdades. Esta noite, mais do que nunca, o concerto será comovente, pois estarei com a única pessoa que compreende na medida exacta o que acabei de escrever.

bso Waiting for the miracle by Leonard Cohen

domingo, 5 de julho de 2009

aritmética prática


Pôr-se no lugar do outro não é empatia, é inveja. Empatia é dor conjunta. Inveja é mal bem dividido.

bso Requiem for a dream by Kronos Quartet

na cauda do tufão


Se eu ficar parada, de respiração suspensa e olhar fito não sei em que acontecimentos que já foram, passará o olho da tempestade por cima de mim sem causar danos? Porque não lhe dou a atenção exagerada que os fenómenos naturais exigem dos homens, esperar-me-á apenas a acalmia, o alívio, a certeza de que a sementeira não foi danificada, pelo que a necessidade e a fome não virão?

bso Youpi by Cornu

A8 Km 30


A morte seduz-nos numa acrobacia de cambalhotas de encher o olho. Por pouco, quase pensávamos que não seria mau morrer. As burocracias do acidente demovem-nos da intenção, mas a sugestão ficou feita e a dúvida instalou-se para sempre. De agora em diante, há duas possibilidades: viver ou não.

bso Behind the wheel by Depeche Mode

fragilidades


Contigo, sou o animal que vira a barriga para cima oferecendo-se ao afago, que estica o pescoço ao beijo e fica indolente de ternura. No mundo dos homens, o ventre é exposto à faca, a nuca ao disparo da execução sumária e o coração a todas as traições. Se nada mais houvesse a agradecer-te, eu cingir-me-ia ao seguinte: obrigada por me devolveres à minha natureza de bicho.

bso The air I breathe by Badmarsh + Shri

domingo, 28 de junho de 2009

que princípio e que fim?


Vivo porque a lembrança de viver é a maior de todas. Por hábito, por não conhecer outra coisa. E por medo, claro. Cultivo a religião da memória, a luta entre desprendimento e gravidade, a sacralização do "mais ou menos", do "nem por isso" e de todas as outras fórmulas que nos colocam na mediania do ser. Como quem sobe um escadote alto, eu tento agora ver a vida de cima, mas a vertigem recorda-me a queda. E cada degrau tremente as antigas inseguranças. E cada insegurança uma memória de dor. E a dor o hábito. Eu sou aquela velha e estúpida serpente que morde a própria cauda e se repete até à náusea.

bso Just like heaven by The Cure

segunda-feira, 15 de junho de 2009

exaustão


Eu quero uma licença de dormir,
perdão para descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

Adélia Prado

bso Blind by Hercules and Love Affair

segunda-feira, 18 de maio de 2009

emboscada


Neste fim-de-semana, os meus cinco sentidos tiranos, que habitualmente se recusam a trabalhar em conjunto, confabularam para me fazer feliz e satisfazer-me o capricho da tranquilidade, o luxo da paz. Houve música cantada por nós, sabores de bebidas loucas, morangos, a tua pele sempre por perto para eu tocar e os teus olhos repousados em mim para eu poder olhar para dentro deles. E o perfume foi o das mais doces evocações. Quanto ao sexto sentido, diz-me que no dia em que partires a MPB terá mudado para sempre.

bso Por toda a minha vida por Elis Regina

domingo, 10 de maio de 2009

misérias


Não adianta insistir na credulidade. O mundo será sempre mundo e as pessoas serão sempre pessoas, sem transcendências. Eu? Serei naturalmente a mesma idiota de sempre.

bso Hurt by Mísia

sexta-feira, 8 de maio de 2009

pedagogia


Ninguém nasce ensinado para o corpo do outro. No entanto, através de um ensino generoso e de uma aprendizagem deliciosa, poderá chegar-se à excelência.

bso Strange kind of love by Peter Murphy

quarta-feira, 6 de maio de 2009

bastidores


Não vou mentir, os meus olhos continuam tristes. Por isso me escondo. Quem sabe ver-te pudesse substituir a cosmética?

bso Hearing the time by Eleni Karaindrou

segunda-feira, 4 de maio de 2009

hipócritas e parasitas


Estou à beira do colapso. Talvez como castigo pela debilidade das minhas respostas. Comigo, até a revolta é anémica.

bso My way by Sid Vicious

sábado, 2 de maio de 2009

sem o instinto do ninho


Logo pela manhã, no trajecto de uma hora de autocarro, ouço uma sucessão de telefonemas da passageira sentada atrás de mim. Sem sequer lhe ver o rosto, percebo os contornos da sua vida e consigo fazer-lhe o esboço. Chamada de trabalho: palavras como relatório, auditoria, despesa elegível ou ofício arrancam-me à força do congelamento do sono; chamada da dona de casa, combinando arrumações e arranjos com a mulher-a-dias; chamada da esposa que acerta com o marido detalhes da mudança de casa agendada para o fim de semana seguinte; chamadas da mãe, uma para a educadora do filho, partilhando a preocupação dos efeitos da mudança de casa na criança e outra para a mãe de um amiguinho combinando uma festa de aniversário; chamada da mulher vaidosa e mundana para a loja onde deixou encomendado um vestido que ficou a apertar; chamada da mulher saudável para a sua médica, prometendo que lhe levará com a maior brevidade possível os resultados dos exames para analisar e agradecendo-lhe a dieta prescrita, cujos resultados são bastante satisfatórios e visíveis; chamada da filha, que aconselha o pai a não se deixar abater só porque descobriu que tem bicos de papagaio; chamada da colega solícita, que marca uma mesa num restaurante para a despedida de um colega de trabalho; de seguida, mais umas quantas chamadas para tentar harmonizar as contribuições para a prenda conjunta a oferecer ao demissionário. A viagem acaba e a mulher continua ao telefone. Levantando-me, posso agora olhá-la: deverá ter a minha idade. Sai à minha frente em passo apressado e eu vejo-a afastar-se gesticulando. A única coisa que consegui pensar durante todo aquele tempo, na antecâmara da minha entrada diária no mundo, foi que teria sido muito bom não me ter levantado tão cedo. Ou que mataria por um café.

bso Family tree by TV on the Radio

sexta-feira, 24 de abril de 2009

festim


Perturba-me sobremaneira a cabotinice dos que se auto-elogiam, dos que puxam de galões insignificantes e que insistem, por vezes de enviesadas formas, em conversas que apenas têm como finalidade chamar a atenção sobre si e para predicados que mais ninguém vê. Este jogo infecundo traz naturalmente consigo uma bateria de expressões ocas, que nada querem dizer para além da intenção que nelas se põe. Uma delas, que hoje me feriu na sua pretensão de evidenciar a objectividade, a singeleza, a rectidão de quem tão seguramente a evocava é "Eu cá sou pão pão, queijo queijo". Pobre criatura incompleta. Então e o vinho?

bso History of the insipid by Michael Nyman

a data e o seu contrário


Liberdade, soberania do povo, direitos, progresso, evolução das mentalidades. A enumeração importa menos do que a lista das compras. Os fantasmas do passado continuam a fazer-nos companhia, instilando-nos a saudade de quando não tínhamos o trabalho e a responsabilidade de escolher. Continuamos a elegê-los, a eles, aos que deviam ter aprendido com a mudança, mas que insistem no apego às velhas cartilhas. Este país é um hotel assombrado à espera que alguma mão de instinto purificador lhe deite fogo.

bso Avril au Portugal par Georges Moustaki

terça-feira, 21 de abril de 2009

now what?


A noção de passatempo intriga-me. Não é estranho que a forma de gozarmos os tempos livres seja ver o tempo passar? Ausentamo-nos das preocupações, libertamos o espírito e procuramos o prazer na mesma dimensão do resto: a dos relógios que avançam inexoravelmente a um ritmo que, por muito que queiramos, nunca é diferente.

bso Photographic Memories by Ennio Morricone

segunda-feira, 20 de abril de 2009

bizarrias


Durante o dia, a cacofonia, os ruídos desarranjados da cidade. Como numa orquestra mal dirigida de instrumentos dissidentes, os sons ofendem. Depois, quando o silêncio deveria ser conforto e melopeia, a bizarria: a noite é um enorme tambor chinês a rufar dentro da minha cabeça. Ao jeito de espectáculo de prestidigitação, criando efeito de suspense, a preparar a surpresa que a manhã seguinte sempre me reserva. Quando o passe de mágica acontece, o coelho que sai da cartola vem invariavelmente morto.

bso Taya Tan by Pink Martini

sábado, 18 de abril de 2009

long gone


Ontem falou-se de ti e não me lembrei que dia seria hoje. Só esta manhã a data se impôs. Por isso, a ti, o único que não me pode ler, feliz aniversário.

bso Nessun Dorma from Turandot by Giacomo Puccini

quinta-feira, 16 de abril de 2009

medusa


Resumo da ópera em cartaz durante toda a semana: quando se cria o monstro, não é possível livrarmo-nos dele. Fim de drama.

bso Fake empire by The National

quarta-feira, 15 de abril de 2009

antigamente


Chove em Abril e já não sabemos se deve ser realmente assim, se era assim ou desde quando deixou de ser assim. Já nada é como antigamente, diz quem se lembra da anterior ordem das coisas. O clima, a paisagem,as pessoas. A vida, enfim. E a verdade é como uma retrete pública: limpa-se à noitinha para voltar a sujar-se pela manhã.

bso This mess we're in by PJ Harvey & Thom Yorke

sábado, 11 de abril de 2009

a praga que cada um merece


O medo de que o céu nos caia em cima é um atavismo vindo do tempo das tempestades imensas que não sabíamos explicar. Se tal acontecesse deveras, o chão perderia também o seu significado. E quando o tecto nos cai literalmente em cima da cabeça? Verificam-se os receios antigos, sentimo-nos à deriva e perdemos o pouco sentido de segurança que nos resta. Nesta época não é estranho evocar, a par de traições e delações já mencionadas, o aviso dos castigos sobrenaturais. Tenho tido as minhas pragas de insectos sob a forma de vitupérios. É certo que não tenho gado nem filho primogénito para matar, mas o meu sangue talha e a frágil esperança gela. Não sou egípcia nem judia e gostava que a compensação pelos bons gestos não conhecesse pátria. E, já agora, que a consequência da maldade não fosse terra de ninguém.

bso Un bel di vedremo from Madama Butterfly by Giacomo Puccini

longe da vista


Do teu corpo só lembro os contornos, os limites. Esqueci-lhe a massa, a densidade, o que nele me faz despertar o delírio. E se regressasses para que a memória volte a ser grata?

bso Por una cabeza by Carlos Gardel

quinta-feira, 9 de abril de 2009

ritual


A Páscoa é a depressão instalada deste lado do mundo, o da dita cristandade. Ambiente propício a considerações sobre a passagem, o renascimento e a renovação, para quem insiste na fé. Dias que lembram a traição e quem se vende por um punhado de moedas, digo eu, incrédula. Quem me dera o outro lado do mundo, onde os calendários são mais benevolentes.

bso One by U2

quarta-feira, 8 de abril de 2009

modo de preparação


Primeiro perde-se o pé. Depois, no redemoinho, o corpo é sacudido de um lado para o outro, como se se desmembrasse. Em seguida, a onda de mal estar atira-nos os pedaços para o local onde tentaremos, atabalhoadamente, recompor os cacos. A dor enforma os ingredientes. O resultado, pouco digno de ser mostrado, não varia. A natureza humana - podre - segue sempre a mesma receita.

bso Prisons by Silent Poets

domingo, 5 de abril de 2009

idades


Há algo da minha vida nesta praia que hoje revisito, em romaria da memória. As rochas são as mesmas. A areia compõe-se dos mesmos minerais, mas em menor substância. A dança perpétua e insinuante das marés traz luas mais felizes que outras. E a inevitável erosão imprime à paisagem a fina tela da descoloração e do desbotamento. O destino não faz visitas anunciadas ao domicílio, aparece-nos de surpresa ao fim de uma estrada, em domingos de tédio.

bso Sea swallow me by Cocteau Twins

quarta-feira, 1 de abril de 2009

sortilégio


Sou abordada na rua pela cigana que tenta vender "óculos, menina?", "carteiras e lenços lindos". Não, obrigada. "Pode, ao menos, falar com a cigana? A cigana diz-lhe que precisa de muita sorte". Aí, estaco. "Tem para vender? Não?..." Quando viro costas, ouço cair atrás de mim, neste glamouroso dia de sol, uma chuva de insultos que esbarra na minha impermeabilidade não sazonal.

bso There is a light that never goes out by The Smiths

domingo, 29 de março de 2009

o tempo e o vento


A cidade tem sido varrida por um vento que não a despolui, antes traz um espesso cheiro de lixo. O dia de hoje, pesado de mais uma hora, foi de desinfecção das ruas e os odores sobrepostos, o dos detritos e o dos químicos para a salubridade pública, causam uma náusea muito antiga. Lembram o primeiro cheiro de flores apodrecidas no paraíso ou os vapores tóxicos e cinzentos das primeiras indústrias, quando deslocámos o centro das nossas atenções da paisagem para a máquina. Por vezes, tentar corrigir ou emendar algo não passa de mais um gesto fútil, um ímpeto arrogante e estéril.

bso Run by Air

sexta-feira, 27 de março de 2009

amanhã


Com uma ameaça de poema já passada a escrito num guardanapo, puxo de outro papel para mais uma lista de to do's. Estas listas são a forma que todos temos de lembrar as razões pessoais para adiar a morte:
1) amanhã serei árvore;
2) amanhã deixarei de dar flores e frutos;
3) amanhã recomeçarei do zero.

bso Famous blue raincoat by Leonard Cohen

tango


Durante anos, marcámos encontros secretos nas caves dos nossos corações. Por entre a escuridão e o bafio, tentámos reencontrar-nos, mas tropeçámos sempre nos trastes que fomos acumulando, aqui e ali largados. Assim, a única coisa que conseguimos em conjunto foi tornarmo-nos numa arrepiante história de fantasmas. As canções antigas cantam sempre mais alto, soubemo-lo sempre. Reconheço o teu carinho, é certo, mas com ele me foste enganando e pedindo que, todos os dias, matasse algo em mim. Serás sempre o pedaço de vidro atravessado na minha garganta, que não me deixará voltar a respirar normalmente. E, como canta a Rampling, é bem verdade que poderia morrer por ti. Mas prefiro viver por mim.

bso Je pourrais mourir pour toi par Charlotte Rampling

energy boost


O meu anjo da guarda está necessitado de cafeína. Há muito que se deixa adormecer no posto.

bso Sleep by U2

bagagem


As malas das mulheres são tidas como autênticas grutas de Ali Babá, labirintos intermináveis repletos de objectos, poços sem fundo, torres de Babel de quinquilharia inútil. A minha não foge à regra tácita. Transporto tudo o que julgo vir a precisar e nunca encontro o que preciso. À excepção da tristeza. Ela é o que tenho de mais portátil e identificável.

bso Comme un boomerang par Etienne Daho

domingo, 22 de março de 2009

being human


À questão batida respondemos com as banalidades do costume. O que é ser-se humano? Um vampiro, um lobisomem e uma fantasma conhecem a resposta. Porque esta é, naturalmente, do domínio da ficção. Ou porque só pelo exagero se chega à verdade. A não perder nem um episódio. BBC.

bso Shock me by Red House Painters

estrada perdida


No troço de estrada em obras que percorro todos os dias entre casa e a cidade têm aparecido muitos animais mortos. A visão perturba-me sempre, mas hoje não pude evitar pensar que é a encarnação do sentimento que desde ontem me acompanha. Desolação e pele esfolada.

bso The english motorway system by Black Box Recorder

engano


Sol. Dia de novidade e flores. Fruta e bebidas frescas ao final da tarde. Noite já entrada, a humidade caía. Não, não era a primavera que chegava. Era o meu pranto.

bso Comment te dire adieu par Jane Birkin

terça-feira, 17 de março de 2009

figuras


Figura de baralho. Figura jurídica. Figura de estilo e de retórica. Figurão. Figura de proa. Figura importante. Bela figura. Fazer figura. Desenho de figura. Figura nacional. Figura do dia, da semana, do ano. Figura e fundo. Figura geométrica. Figura ímpar. Figura musical que acompanha a melodia. Da escrita à figura. A figura na pintura. Por vezes o substantivo deixa de ser nobre, adopta uma roupagem ordinária. Aí, passa a ser triste figura. Figurinha. Figura rídicula. Esta figura incita ao plágio aqueles que integram o seu miserável séquito. E passam, ainda que os cães não ladrem, numa caravana muito triste e abandonada. O rídiculo é a roupa de domingo dos pobres de espírito. Desfilada até à exaustão.

bso The Muppet Show theme by Jim Henson & Sam Pottle

segunda-feira, 16 de março de 2009

as comparações são como as cerejas


As mãos são como as árvores, ao fim de uma vida de exuberância e gestos largos não escondem a idade. As palavras são como a chuva, miudinhas ou intensas. Por vezes devastadoras, por vezes molha-parvos.

bso Playground love by Air

domingo, 15 de março de 2009

dia de ensaio


Porque há duas ou três coisas que ainda podem ser melhoradas e há que garantir a perfeição do resultado, estou em ensaio geral para a Primavera.

bso Blue by Ghostland

quinta-feira, 12 de março de 2009

pele papel


As tatuagens são como carimbos num passaporte. Da mesma forma que uns assinalam a nossa passagem por locais físicos, as outras recordam, na geografia da pele, momentos ou emoções que queremos em nossa companhia enquanto a vida também permanecer. Quero que pedaços de uma escrita antiga e símbolos de resistência me animem o corpo, lembrando que este também é um lugar de linguagem não frívola. Definitiva.

bso Caravane par Raphael

segunda-feira, 9 de março de 2009

bso


Cresci com música e não me lembro de fase nenhuma da minha vida em que ela não estivesse presente. Da mesma forma que não concebo uma casa sem livros, também não a concebo sem discos. Não são só paixões, pois essas são imaturas e fátuas. São amores para a vida, manifestações essenciais de beleza. Motores de comoção. E como não são só os grandes momentos que reclamam uma banda sonora à altura, passarei a remeter o que escrevo para um tema musical particular. E farei o mesmo, retroactivamente, com o que já ficou escrito para trás. Se é a música que está na origem do texto, ou se é o texto que a evoca, não importa. O certo é que na minha cabeça são universos distintos, sim, mas inextricáveis. Pensam cada um por si, cada um tem a sua imagética própria, não se atropelam, mas não vivem um sem um outro. Como os verdadeiros e incombatíveis amores.

bso Love will tear us apart by Joy Division

la folie


E fui mesmo. Para concluir o que teria concluído se tivesse ficado em casa. Aqueles de quem gostava ainda são os mesmos, no conforto bom da certeza. Aqueles de quem não gostava, também. Mas nestes últimos há um acrescento, a teimosia na estupidez cria-lhes uma capa que lhes engrossa a presença. Ocupam muito espaço e chateiam. Mas nada disto me impediu de rir e dançar. Cheers.

bso tema título deste post by The Stranglers

sexta-feira, 6 de março de 2009

o fogo e a roda


Sim, tudo muito certo, invenções que transformam o mundo, maravilhas da técnica, revoluções tecnológicas, supremacia sobre a natureza. Mas no momento em que a evolução o presenteou com um polegar oponível o que é que se passou exactamente na alma do homem?

bso Le plat pays par Jacques Brel

a vida para além disto


É possível. Um quinhão de quietude, onde a beleza não seja petulante. Outra latitude, mas sem prioridades invertidas. É outro mundo, mas não é longe.

bso The wanderer by Johny Cash

os outros


Para além das habituais dúvidas que trago em mim, bato-me há alguns dias com uma nova, mais concreta, menos ontológica. Mas que acaba por redundar no dédalo de questões de sempre. Organiza-se há muito, com requintes precisos, uma mega reunião de pessoas que, na sua adolescência, partilharam escola, festas, dramas e delírios da idade. In a far, far away land. Pergunto-me: obter-se-á verdadeiro prazer ao rever esses rostos e relembrar episódios passados ou fingimos alegria no reencontro de forma a iludirmos o crescimento, a idade, as vidas que não se cumpriram conforme o imaginado? Decido não participar no ritual de celebração do passado, pois não tenho por hábito cultivar certo tipo de saudosismos e, inelutavelmente, a adolescência não foi a fase mais feliz da minha vida. Decido estar presente, pois pode ser bom, inocente, salvífico. E até lá, mon coeur balance. O perfume da hora ditará a decisão acertada.

bso Road to nowhere by Talking Heads