terça-feira, 30 de dezembro de 2008

finais


O fim de ano não nos é exterior. Não é a celebração, a cenografia perfeita de uma gala. O fim de ano é mais rústico. Passa-se nas nossas entranhas, num balanço entre o que conseguimos ou não digerir nestes últimos meses e que forças nos restam para o que aí vem. Não é o brilho elegante dos copos que se erguem na festa; são as manchas toscas de humidade no nosso coração. Não é a indumentária esmerada, pensada ao pormenor; é a forma como o tecido da pele ainda nos assenta. Não é o banquete robusto e variado, sofisticado; é aquilo que o nosso estômago se sente capaz de aguentar sem se revolver ainda mais. Não são os votos de felicidades futuras; é o contrato sem termo que firmamos connosco para vivermos mais alguns anos. Não são as doze passas e os doze desejos; é um sem número de desgostos. A ter equivalente exterior, o fim de ano seria um salão de baile cheio de fantasmas, com as paredes descascadas e o soalho gasto. A música seria uma memória muito, muito antiga.

bso Take this waltz by Leonard Cohen

domingo, 28 de dezembro de 2008

azar


Os princípios deterioram-se. Os valores adulteram-se. As crenças apodrecem. As prioridades coalham. Os gestos importantes mofam. A verdade ganha gorgulho. Toda a gente tem um prazo de validade.

bso Qu'est ce que ça peut faire par Benjamin Biolay

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

o natal é doce


No café, à mesa do pequeno almoço, as senhoras bebem galões e devoram sonhos. Eu bebo um café negro como a minha disposição e regurgito os pesadelos da noite.

bso Couleur café par Serge Gainsbourg

domingo, 14 de dezembro de 2008

odeio aforismos


O dia precedente é o mestre do dia seguinte.

Píndaro

bso Air on the G String de J.S.Bach

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

não particularmente


Inaugurei já o meu espírito natalício deste ano. Que é como quem diz: abriu a época oficial da frivolidade. Já corro para a compra dos presentes tão desvairadamente como todos aqueles que podem. Faço e refaço listas com os nomes dos que pretendo presentear. O número dos listados é cada vez menor. A triagem que vamos fazendo pela vida fora reflecte-se nas listas de Natal. Sinto-me mais em paz nesta época? Não particularmente. Sinto-a como uma altura de reflexão, de balanço? Não particularmente. Estou mais de acordo com o mundo? Não particularmente. Mas gosto de ver sorrisos nos rostos que amo e o contentamento pueril de quem abre um presente. O Natal em família é também a altura de contar as cabeças. Quantos estamos - e em que estado? E quantos já não estão - e por que impedimentos? Repetem-se as mesmas histórias de sempre, os comentários a que já nos habituámos, até os presentes que já sabemos de antemão ir receber. E é tudo tão bom porque é tão certo. O Natal não é matemática pura, mas é certamente estatística fiável.

bso Message to a friend by Pat Metheny

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

join the dark side


Há algo de tranquilizador, ainda que invasivo, no facto de sermos olhados de forma penetrante. Sobretudo se esse olhar nos diz ao instinto que percebeu e aceitou que a nossa vida é um quarto de cortinas opacas e que o nosso coração bate na escuridão. E nós, seres de brumas e sombras e nuvens escuras, agradecemos para a vida a clarividência e a chama.

bso Ma mémoire sale by Louis Garrel

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

a troca


Há, no trânsito, imagens que abalam a minha patética consciência burguesa. Não me refiro à fauna por detrás dos volantes, animais selvagens no cativeiro breve do habitáculo. Falo de quem, por entre os veículos, bate nos vidros para tentar vender qualquer coisa singela. Na tarde de chuva, hoje, um velho deslizava, como a sua vida fugidia, de faixa para faixa, debaixo de um guarda-chuva murcho pelas varetas partidas. Trazia na mão saquinhos de biscoitos e tentava a sua sorte: aliciaria alguém o suficiente para que abrisse a janela ao frio e, ali, no instante de um sinal vermelho, efectuasse a modesta troca? Biscoitos por moedas. Farinha, ovo, açúcar e o metal de sempre. Não acredito em anjos, mas de vez em quando gostava que um deles se fizesse à estrada para tarefas menos divinas, como abraçar quem tem fome e frio e medo.

bso Calling all Angels by Jane Siberry with k.d. Lang

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

da ausência


Há um rio de nove anos que desagua hoje na minha dor de sempre, oceânica. Há nove anos, na nascente, perdi pela primeira vez para a vida. Ou para a morte, com mais rigor. Experimentei pela primeira vez a sensação do nunca mais. Nada nos deixa mais impotentes, nada nos ridiculariza tanto. Como a dor faz de nós burros, nada soube então. Neste tempo, fui aprendendo a tua perda. E com ela, aprendendo outras, relativizando-as, perspectivando-as. Hoje, na foz desse rio, dou mais importância a este dia do que é normal. Deve ser por causa do somatório, do cúmulo de knock outs sofridos neste ringue cheio de lugares vazios que são os meus dias. Faz hoje nove anos que te foste. Daqui a três dias celebra-se outro aniversário, como sabes, no qual eu devia festejar a vida. Ainda bem que não estás para não veres como me desmorono. Para não veres o cansaço e o desamparo que são hoje o meu único cenário e do qual também te culpo. Levantarei um copo aos meus 35, sim, mas por vício, não por querer elevar o espírito ao festejo. E lembrar-me-ei de ti, acusando-te da tua quota de asneiras no molde torto da pessoa que sou, proferindo entre dentes as exclamações revoltadas que te faziam explodir e que hoje poderia gritar à vontade por já não poderes ouvi-las. Descansa, hoje são apenas reminiscências. Hoje já não estou contra ti, embora trave contigo, todos os dias, uma batalha ao espelho. É que ninguém quer ver um pai em si. E lembrar-me-ei de ti, acarinhando as memórias gratas que, estou certa, também te encheram o coração até ao teu último minuto de consciência. Trago em mim também o teu lado bom e só isso me trava hoje a vontade de me abandonar às lágrimas. E guardo tudo porque não é possível esquecer. Quero-te como te quis em vida. Tranquilo. E quente. Porque nos meus sonhos e pesadelos estás sempre perdido e com frio. Aceita, pois, hoje, o conforto do meu afecto e a manta de retalhos das minhas palavras. Eu prometo, um dia, aceitar que morreste.

bso Bliss by Tori Amos

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

prenúncio


Quando os homens falam do futuro, os corvos, lá em cima, riem-se.

bso Want by Recoil

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

em palco


Conversa em cenário escarlate:

“Aproxima-te. Mal posso esperar que este espaço entre nós se encha de carícias que separem as águas do mar da minha pele.”
“Que palavras de assombro! Que olhar, esse! Caminho para ti e o amor cresce. Estes passos são já gestos prenhes de intenções”.
“Que bom é tocar-te. Abraça-me. Liberta-me desta mortalidade. Este amor instila em nós o sopro de uma raça divina. Poderosa, imensa. Que os deuses nos perdoem por assim os humilharmos na sua inutilidade”.
“Que vontade de pecar! Se os deuses se sentirem ofendidos com este amor terreno e carnal, preparam certamente a nossa punição e ela será terrível!”
“ Ou então, orgulhosos destes dois mortais que ambicionam igualá-los, conceder-nos-ão a graça de viver em pleno pela vida fora".
"Nada receemos. E não permitamos que estes pensamentos nos ensombrem o desejo. Esta é a hora em que somos criaturas sem criador”.

bso The dancer by PJ Harvey

terça-feira, 11 de novembro de 2008

where is my mind?


Quando a mente emperra, não há lubrificante, natural ou industrial, que nos valha. Sentir uma ideia presa entre a porta e a ombreira, nem para lá nem para cá, por mais empenho que ponhamos em transpô-la, deixa-nos com um sentido de frustração pueril. Como se do outro lado de uma ideia que consegue tomar forma, após aturado e conseguido raciocínio, estivesse uma revelação, um dado novo, que nos transforma e transforma as coisas à nossa volta. Se, pelo contrário, o que acontece é ficarmos irremediavelmente do lado de fora, passamos a ser um saco vazio, um recipiente sem utilidade, um continente sem conteúdo. Como a criança que somos, escorregamos pela parede abaixo até ao chão que nos acolhe. Abraçamos as pernas e aguardamos, com toda a esperança que a vida ainda não nos tirou, que a porta acabe, generosamente, por abrir-se. Recusamos, claro, com veemência, espreitar pelo buraco da fechadura. Não somos dados a visões parciais e não nos agrada vislumbrar apenas uma porção do caminho. Gostamos de paisagens imensas, ecrãs gigantes e telas despudoradamente grandes. Esperamos. A mente é um enorme balão vazio, daqueles que têm rostos patéticos pintados, e não pertence ao corpo ali largado. Só queremos uma chama, uma pequena luz que seguiremos até conseguir fazer de tudo o que se encontra aninhado nas fendas, reentrâncias e dobras das nossas consciências algo de bom, de novo, que sirva. O fundador de uma ideia pode ou não ter orgulho nela, mas colhe depois de semear. Não importa se a sementeira foi organizada, metódica, levada a cabo na estação certa, ou se foi bravia, trazida pelo acaso dos ventos. Quero que a minha cabeça seja uma seara dourada.

bso tema título deste post by Pixies

domingo, 9 de novembro de 2008

a sôfrega hidra


A dada altura da nossa vida, nós, mulheres, por cumprirmos o receituário atávico de asneiras e precipitações que Deus nos prescreveu, somos apodadas de hidras. É óbvio que o piropo tem de partir de alguém que sabe do que está a falar, tem umas luzes sobre mitologia, já ouviu falar nos doze trabalhos de Hércules, pelo menos na versão em celulóide, e tem a cabeça suficientemente retorcida para fazer analogias entre feras escondidas em covis, prontas a estraçalhar quem se lhes atravessa à frente, e seres cheios de estrogéneo à beira de um ataque de nervos. Sim, recentemente também fui brindada com o rótulo. Olhem, gostei. O insulto é, normalmente, desconhecedor de limites e tem uma imagética capaz de fazer tremer o mais estóico. Logo, podia ser pior.

bso Heroes by David Bowie

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

má construção


Se o mundo é obra de Deus, então Deus é um pato bravo. E dos aldrabões. A obra não deveria ter sido licenciada, desde já pelos erros crassos revelados pelos projectos de engenharia e arquitectura logo à partida. Mas Deus tem conhecimentos e cultiva a troca de favores. Na certeza de não ser embargada, cedo a obra começou a mostrar as suas fragilidades: fundações erguidas sobre solo arenoso, mau cimento, a canalização e a instalação eléctrica a denunciarem a utilização de material de quinta categoria. Acabamentos manhosos. Trabalhadores descontentes com a cruel chefia, perita em minar qualquer iniciativa ou camaradagem. E, claro, o mau gosto desconcertante de quem pauta a vida pelas aparências. As fracções vendem-se bem, apesar de tudo. A verdade é que todos querem um lugar no mundo e os tempos não estão para grandes exigências. De vez em quando, esta obra e o personagem caricato que a pensou são notícia de primeira página, quer nos jornais de referência, quer nas revistas cor de rosa. Escândalos financeiros, rumores de homossexualidade, permanente ameaça de implosão por parte das autoridades competentes com vista a cumprir as novas leis de preservação paisagística e outras manchetes bombásticas. Mas nada acontece. O mundo veio para ficar. E nós, inquilinos titubeantes ou proprietários claudicantes, reclamamos, mas engolimos. E todos os meses, impreterivelmente, pagamos o condomínio.

bso Monkey gone to heaven by Pixies

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

a besta em nós


Nem todos os dias são dias de discursos prolixos. Hoje fico-me pela simplicidade de duas ou três observações. De cabelos em pé. Na boca do lobo. À espera de ser o repasto do dia ou negar-me à condição de presa. Correndo, correndo sempre.

bso Society by Eddie Veder

sábado, 1 de novembro de 2008

não há amor sem ciúme?


Ao contrário do que muito se pensa, o ciúme não é lisonjeador. Ofende porque desacredita. Desiquilibra porque duvida. Amedronta porque agride. Estupidifica porque se repete. Tolhe porque sufoca. Cansa porque exige energia. Seca porque é improdutivo. Estagna porque é inconsequente. Insulta porque não precisa de palavras. Gesticula por não ter razão. Insinua-se melifluamente porque é dissimulado. Tem uma vida secreta, a que germina sob a atenção e os cuidados. Arrasa porque coloca tudo em causa. Distorce, enviesa, transforma. Incapacita e aprisiona. O ciúme não ama, não quer bem. O ciúme toca e estraga. Midas ao contrário. O ciúme é posse, é propriedade, é manutenção de status quo. O ciúme é poder nas mãos de quem não o sabe usar. O ciúme é desajeitado e incompetente. É o pior cego porque não quer ver para além de si. Ao contrário dos anjos, o ciúme tem sexo. É mulher. Uma mulher que não sabe o chão que pisa. Os homens também sentem o ciúme. É o seu lado feminino. A evolução não olvida o instinto. O ciúme também tem forma. É um bicho roxo, tentacular, de apetite voraz. Uma besta bem alimentada que veste cores de tragédia. Tem dentes cortantes e engole sem mastigar. Rói até ao osso limpo. Por fim, porque reduzir a nada é o seu limite, dos ossos faz cinzas. O ciúme não é uma fénix. Não renasce e não reinicia. O ciúme não se deixa matar, não é uma espécie em vias de extinção. O ciúme é extinção. O ciúme é a humanidade a debruçar-se sobre o abismo das suas ambições e contradições e a cruzar os braços perante a inevitabilidade do pior. O ciúme é caos e não cosmos. O ciúme nega qualquer possibilidade de elevação e redenção. O ciúme reduz-nos à nossa biologia. O ciúme é carne. A passar do prazo de validade, a intentar contra a nossa integridade física, depois de destruir a moral. O ciúme não é contra a religião. O ciúme é religião, pode dar sentido a uma vida. Tem dogmas, molda comportamentos, tem ritual. E pode matar, como as religiões. Consome tudo. E por poder ser maior do que tudo, consome e esgota até as palavras que o descrevem, impondo ao discurso um intransponível ponto final.

bso Buried bones by Tindersticks

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

o que parece não é


Ontem, em conversa sobre avaliações subjectivas, aprendi o que é um erro de paralaxe. A paralaxe começa por ser um conceito da Matemática e da Astronomia que define a alteração da distância angular entre dois pontos provocada por um observador em movimento. Para o caso vertente, o do erro, trata-se de um pressuposto ou premissa incorrectos do qual parte toda uma análise posterior que se vê assim comprometida pelo erro inicial. O resultado será necessariamente erróneo, falso e não conforme à realidade que se propôs estudar. Descabido, portanto. Parece que acontece muito. Hoje, depois de dedicar algum tempo ao assunto, descobri que também eu sou um erro de paralaxe. Uma precipitação inicial, um falso desenvolvimento que deram subsequentemente origem ao ser desadequado que sou.
E mais nada.

bso Hope by REM

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

pilhérias


Acordamos.

“Tenho a boca a saber a sal”.

“ Sim, a vida pode ser como uma paisagem de salinas, erma, monótona, desoladora na brancura da sua solidão. Nem o brilho dos cristais sob a varinha de condão do sol nos parece oferecer qualquer promessa redentora, qualquer possibilidade de brilho”.

“E como acontece com a comida demasiado salgada, bebemos água e vinho para minorar os efeitos. Ainda que a custo, comemos o que está no prato.”

“Para não fazer a desfeita a alguém?”

“Isso. Ou porque de qualquer forma temos de alimentar-nos. Ou porque nos lembramos, com um aperto no coração, que há muitos que passam fome.”

“Ou porque nós próprios já passámos fome também”.

“Também. Não há nada como as más memórias para nos dar a ilusão de que nunca mais cometeremos os mesmos erros.”

“ Bom, esperemos que o dia seja pequeno e ameno. E que, de alguma forma, as horas te sejam benevolentes”.

“Assim seja”.

bso The Nomi song by Klaus Nomi

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

humores


Uma atitude melhorada em relação ao que se passa à nossa volta, com mais energia, não tem de nos afastar, de modo algum, da convicção filosófica de que a vida, bem lá no fundo, é uma merda. Por isso, pelo sim, pelo não, vou andar bem disposta o resto da semana.

bso Cripple and the starfish by Antony & The Johnsons

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

alma danada


Sem anima. Eu e o mundo. Puro silêncio. Pura quietude.

bso Aria from La Wally by Alfredo Catalani

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

ser ou não ser feliz


Dizem que o dinheiro não traz felicidade. Isto é tão verdade quanto dizer que qualquer outra coisa não traz felicidade. Mesmo o amor, depositário ideal de todas as esperanças humanas, não a traz. O amor é o último recurso dos pobres de tudo e deixa um sabor a pão duro e água inquinada na boca. O amor é uma esmola.

bso Both sides now by Joni Mitchell

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

as estações já não são o que eram


Acordei envolta em névoa cinzenta e chuva miudinha. As estações do ano também se passam dentro da nossa cabeça. Na minha já é Inverno há muito, demasiado tempo.

bso Little water song by Ute Lemper

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

sombra de mim


Não quero ser a nódoa no pano, o joio no meio do trigo, o i sem ponto, o prato não limpo, o patinho feio, a ovelha ronhosa, o sol por entre a peneira, o macaco sem galho,o mexilhão que se lixa, o quarto sem vista sobre a cidade, a guerra sem paz. Quero ir e voltar, tocar sem estragar, estranhar e depois entranhar. Não quero um pássaro na mão nem dois a voar. Quero bom vento e bom casamento, águas mil em abril, maios maduros e meses sem r. Não quero ser um perigo constante ao volante nem um tacho sem tampa. Não quero ter um parafuso a menos nem jogar só com metade do baralho. Quero uma mente sã num corpo são. A verdade no vinho. Errar porque é humano. Não quero usar tamanho L e XL, não quero um T0. Não acredito em histórias da carochinha nem no pai natal. Não sou doce como o mel nem boa como o milho. Sou farinha de não sei que saco. Não esfrego as mãos de contente nem apunhalo pelas costas. Não choro como o crocodilo nem rio como a hiena. Ronrono de vez em quando. Vejo como a águia e como o lince, mas não sou rainha em terra de cegos. Não tenho ouvido de tísica nem mãos de pianista. Falo pouco e o meu silêncio é de ouro. Trago as emoções à flor da pele. Dói-me muitas vezes a cabeça, menos vezes o coração. Tenho uma pedra no seu lugar, dizem. Sou uma sombra de mim. Não há mal que sempre dure. Mas, ao contrário do ditado, o bem acaba.

bso Fake plastic tree by Radiohead

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

testemunho


Saudades dos jogos de criança, que nos iludiam deixando-nos felizes. Os jogos de adulto são jogos de mentiras. Elaborados, sim, mas não nos alegram nem nos estimulam a inteligência. Embrutecem-nos. Já não se trata do divertido e generoso equilíbrio do ora-ganhas-tu-ora-ganho-eu. Agora, o derrotado é sempre diminuído, despojado das suas qualidades, adjectivado de forma pouco simpática. E o vencedor... bom, o vencedor é sempre o vencedor, regozijando-se na sua prepotência, abusando da pequena parcela de poder que lhe cabe em mãos. Os jogos de adulto humilham. A mentira humilha-nos. Como acreditar? E em quê? Qual é o meio termo entre a descrença e a credulidade? Onde pára a verdade? No fundo tudo se resume a uma questão: "Quem testemunha pela testemunha?" (Paul Célan).

bso The truth by Handsome Boy Modelling School

terça-feira, 16 de setembro de 2008

pela metade


Apesar de querermos ser inteiros, nunca somos mais do que uma metade de qualquer coisa. A maior parte das vezes, uma metade torta, torpe, enviesada. São patéticas as nossas tentativas de sermos tudo ao mesmo tempo. Incorremos constantemente no erro de reduzir o nosso olhar a um preto e branco estanque, esquecendo-nos das infinitas zonas de lusco-fusco, semi-obcuridade, média luz. E as cores?... Ahh, as cores...
Não há equilíbrio, não há balanço, não há igualdade. Deixemo-nos de infantilidades.

bso Dante's prayer by Loreena Mckennit

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

onde?


Em cerca de três décadas e meia, vivi já em mais de vinte casas diferentes. Diferentes foram sendo os países, os locais, os motivos da mudança e as próprias casas em si. Partilhei-as em idades diferentes com a família, os amigos, namorados que iam e vinham, depois novamente a família, novamente os amigos, vivi sozinha e depois os companheiros. Não casei, não caso. Certamente não casarei. Não tenho muitas raízes. A algumas casas fui capaz de chamar mais casa do que a outras, numas senti-me melhor, noutras pior. Nunca me apeguei demasiado a nenhuma. Talvez porque saiba que uma nova mudança ocorrerá sempre em breve. A contradição é que eu gosto de voltar para casa ao fim do dia. Gosto de estar em casa, recolhida, protegida. E anseio pela casa a que chamarei finalmente minha e na qual possa fixar-me como sempre desejei. E não volatilizar-me como acontece sempre. Para combater este sentimento de não pertencer a nenhuma casa, sempre me fiz rodear de uma quantidade absurda de objectos pessoais, trazidos de viagens, comprados por ímpeto, oferecidos. O que equivale a dizer que as minhas mudanças são sempre pesadas e demoradas, mas também que esses objectos materiais e mundanos são o sentido de lar que me resta. Esta semana fiz mais uma mudança. Para lado nenhum ainda. Deixei uma casa cujas paredes coloridas reflectiam todos os dias e a todas as horas um miasma de infelicidade e frustração. E, por enquanto, gozo o limbo de não estar em lado nenhum e trazer a vida dentro de caixotes. Sinto-me livre, mas muito, muito em breve encontrarei uma nova casa. Talvez não seja a definitiva, mas será, tenho a certeza, a mais feliz de todas.

bso Home is in your head by His name is Alive

terça-feira, 2 de setembro de 2008

entre 4 paredes


De volta ao trabalho. O lugar onde às vez somos outros e por vezes conseguimos ser nós próprios. O lugar do tédio mas também o lugar do entusiasmo. Horas de camaradagem desejada e as outras em que já não podemos ver ninguém. O espaço das ideias nos dias bons e das frustrações nos dias maus. Os sorrisos que fazemos questão de mostrar e o choro que escondemos atrás de portas fechadas. Ritmos calmos e ritmos frenéticos. Caras que passam todos os dias e que gostamos sempre de rever, outras de que sentimos a falta. Desejo irrepremível de descanso e férias e o regresso bom, quando reconhecemos o cheiro das paredes. Dia após dia, o trabalho é assim: inquietação, como em tudo o resto.

bso Lazy by Love and Rockets

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

tempo


No engenho mecânico da ansiedade, cada segundo é eterno, é mais do que a vida que nos resta, é mais do que o ar que ainda podemos respirar, é mais do que qualquer coisa insignificante que possamos ainda dizer ou fazer. E há tanta coisa ainda para dizer ou fazer quando a vida nos vira as costas e desata a correr, virando-se de vez em quando para trás para dizer-nos: “Anda, vá, vê lá se me apanhas”. O que me sobra do tempo é isto, a expectativa de saber se o tempo, para mim, passou ou não.

bso Did I imagine you? by Dot Allison

fuga


Sento-me calmamente, de frente para o meu passado. "Precisamos de terminar a nossa conversa", digo-lhe. "Temos de pôr fim a este ajuste de contas que trazemos pendente há já algum tempo". A princípio, aflito como uma criança que fez asneira, vai-me ouvindo. Culpo-o, recrimino-o, ameaço castigá-lo. Aí, humilhado pela minha zanga, adopta a arrogância e a malvadez do patife apanhado em flagrante. "Basta!", grito-lhe. Assustado, foge. O meu passado é um desertor. E eu, como um guarda prisional complacente, permito-lhe a fuga, não dou o alarme e, por entre um sorriso, agradeço secretamente o que fez pela minha vida.

bso Running to stand still by U2

domingo, 31 de agosto de 2008

shall we dance?


Enquanto o meu outro eu dança, dando corpo à inquietação, este, o de todos os dias, o que não sabe dançar mas traz a música dentro de si, observa de um canto e enumera todas as razões da espera. E conclui, confessando-se: agora sim.

bso Dance me to the end of love by Leonard Cohen

sábado, 30 de agosto de 2008

dias felizes


É ao fim do dia que o autocarro rasga a paisagem urbana com maior violência. Eu estou de fora, com o ruído e o movimento da cidade a abaterem-se sobre mim, e vejo lá dentro os sonhos desfeitos de gente desfeita. O cansaço e a desilusão roubaram-lhes o brilho aos olhos, o fulgor à pele, o viço aos cabelos. Com os pés bem assentes no passeio, pergunto-me quantos daqueles que por aqui passam no seu percurso quotidiano terão já pisado chão diferente deste. Ponho-me a imaginar alguém que folheia uma revista mundana e que apanha aqui e ali as migalhas da improvável vida feliz de um colunável. E finge, pelo curto tempo de um artigo ou de uma pequena história, ser outro. Ponho-me a pressentir o movimento cadenciado de alguém, que por vício ou por não saber que outras coisas mais felizes podem duas mãos fazer, tricota uma peça que não ornamentará nada nem ninguém. E que com esse movimento repetitivo enfurece quem se senta ao seu lado. Depois lembro-me de que todos os outros, os que tiveram a sorte de conseguir um lugar onde antecipar o descanso da noite ou os que ainda terão de arrastar as suas penas de pé, devem permanecer com o olhar parado, no estupor dos descrentes. Ou perscrutam-se na empatia do desespero. Ainda no mesmo sítio, já o autocarro se afasta, divido-me entre a preocupação de não querer ser como esta gente e a improbabilidade de o não ser. Pelo menos hoje estou de fora, no passeio, e posso fechar os olhos e imaginar-me no adro de uma velha igreja, tão cheia de todas as memórias boas e más, afastada no meu espaço e do meu tempo. O vento refresca-me e cola-me os cabelos à cara. O sino da igreja toca e eu sinto-me quase, quase bem. Mesmo os dias maus têm um fim. Atravesso a passadeira para o outro lado da rua, onde te encontrarei. E o nosso abraço será apertado e irá redimir-nos da tristeza que ninguém deveria ter de sofrer.

bso Black water by Rain Tree Crow

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

wild river


Não se foge da morte nem do amor. Pela inevitabilidade. E quando o amor nos fez um sinal inequívoco, seguimo-lo. Pela noite dentro, servindo-se dos nossos corpos cansados, foi-nos marcando profundamente, deixando-nos sulcos indelevéis que se somam agora à mancha das nossas peles já tatuadas. O amor fez-nos o sinal esperado e não o explicámos, não o entendemos, não o quantificámos, não o qualificámos para além do sublime que é sempre. Nesse rio para onde nos atirou, o amor gritou-nos da margem, em jeito de aviso, já seguíamos nós pela correnteza forte, que não há bons nem maus. Há os que se amam e sentem as almas a transbordar dos lábios quando estes se tocam. Sim, o amor é o único verdadeiro pecado porque até o diabo acredita em deus. Depois, do toque de flores das nossas mãos nasceram os frutos de sempre e os corações reuniram-se em prece conjunta.E o resto da noite foi uma bebedeira de sono e harmonia.

bso Os nossos nomes sussurrados por entre o tumulto

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

carta de amor


Eram bonitas as cartas de amor que meu pai escrevia a minha mãe nos tempos de namoro. Li-as nas vésperas de um Natal de há muito tempo, quando procurava presentes escondidos. Essa era uma das minhas fantasias infantis, acreditar em surpresas incríveis remetidas ao secretismo dos fundos dos armários. A ansiedade já me segredava, com maldade, que não devemos aguardar quietos o que nos vai caber em sorte, que devemos precipitar os acontecimentos. Mais tarde na vida receberia a lição adulta sobre o tema: os finais não são felizes.
Encontrei a curiosa caixinha de cartão numa gaveta de lenços, tão fora de moda como as cartas de amor. O rebordo dourado chamou-me a atenção. Na tampa um desenho mal impresso de um casal de jovens enamorados, em jeito muito anos 70, abonecado e piroso. Lá dentro, várias folhas de papel colorido dobradas em quatro ou em oito. Cada embrulho, uma carta, palavras novas, sentimentos novos. Hoje, não consigo reproduzir uma única palavra, uma ideia, uma emoção ali impressas. O que retenho, o que me remete para essas cartas, é a sua atmosfera, o mundo próprio que as palavras encadeadas circunscrevem, impermeável. A solidez desse mundo não tem equivalente no exterior.
Cometi a inconfidência de mostrá-las às amigas de então. Porque há uma altura em que, a par de outras grandes verdades, acreditamos nas cumplicidades incorruptíveis e eternas. Ávidas como eu de crescer, satisfiz-lhes também a curiosidade das primeiras descobertas. Partilhámos o espanto e a expectativa. Efabulámos sobre as nossas vidas futuras. A possibilidade estava toda lá. A perfeição estaria lá. A felicidade estaria lá. A beleza estaria lá. E a inocência tinha lugar cativo na fila da frente.
Durante muito tempo, reli essas cartas, até que deixaram de me interessar. Abandonei os refúgios e mais tarde comecei eu própria a escrever as minhas cartas, nem sempre com um objecto de afecto definido, mas também pelo exercício do prazer adolescente que é escrever sobre o amor. E esperava impacientemente que alguém mas escrevesse também. Generosas, contidas, irritantes, ansiosas, raivosas, aborrecidas, nervosas, iradas, dramáticas, suicidas, mas todas essenciais, vitais. Maiores que tudo. Enchendo-me a vida de forma a não caber mais nada. E o nome aposto no fim era o nome do próprio amor. Peremptório e definitivo. Pelo menos até à carta seguinte.
Trocar cartas de amor é trocar corações. A respiração que suspendemos na sua leitura é a nossa alma a desiquilibrar-se à beira do abismo. A boca seca que nos deixa a certeza de sermos amados – pois se o escreveu!... – é o preâmbulo do desejo que nos vai arrebatar. A consumação daquelas palavras marcar-nos-á a pele a ferro e a nossa memória em pânico viajará de volta a elas sempre que a vida nos voltar a tirar o tapete.
A carta de amor que recordo com mais dor, e que encontrei recentemente dentro de um livro do Moravia há muito atirado para as prateleiras de trás, chamava pela minha presença de luz e cor (e hoje sou só sombras!) para manter afastada uma tendência obscura de reclusão e desprendimento de quem a assinava. Faltei a esse encontro. Mais tarde, por razões ainda hoje desconhecidas por todos, o assinante cortava os pulsos no seu apartamento em Lisboa. Para mim, a falta de cartas de amor facilitou-lhe o compadrio com a morte.
Também para mim veio o tempo da condenação. Das desilusões. Trazer o Pessoa na ponta da língua acusando que “todas as cartas de amor são ridículas”. Decretar em todas as conversas de início da idade adulta a morte do romantismo e a imperiosa necessidade da liberdade de movimentos. A autodefesa. A validação social. A negação do lugar do amor, aqui, entre duas pessoas. A negação dos lugares do amor, que são toda a parte.
Perdi-me em amores imerecidos e não mereci nenhum. Ganhei medo à vida, às pessoas, às promessas sem força de lei. Como nos meus terrores nocturnos de criança, sentia permanentemente a absoluta certeza de que algo terrível ia acontecer. Recomecei a procurar refúgios. Fechei-me, pouco a pouco, numa gaiola imaginária. Quase sempre, a prisão conforta-me. Mas, por vezes, atiro-me contra as grades, à procura de uma saída que não estou certa de querer encontrar. Firo-me e saro-me, uma e outra vez, mal me dando conta dos pedaços de mim que vão ficando pelo caminho. Não os recuperarei. Já nem tudo é possível.
Não voltei a ver a caixa das cartas de amor dos meus pais. Nem a procurá-la, por excesso de pudor. Estou certa de que a minha mãe a guarda, sem a emoção de antes, mas com a indiferença terna que prodigalizamos aos objectos que sempre estiveram na nossa vida. Nem me teria lembrado dela se hoje não estivesse triste. Se hoje não estivesse à espera que uma carta de amor me salve da solidão e do tédio. Pode ser anónima.

bso Love letter by Nick Cave

do silêncio


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava!
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...
já não se passa absolutamente nada.

E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos mais nada para dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
E o passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

bso De cara a la pared by Llasa

terça-feira, 26 de agosto de 2008

fraca mecânica


Houve manhãs em que tive vontade de morrer ao acordar. Morrer mesmo. Não a vontade de morrer que metaforiza a vergonha, a humilhação, a dor da perda, o cansaço do quotidiano. Quis deixar de respirar, deixar os olhos fechar-se sem combater o peso das pálpebras, como quando adormecemos, apagar-me escorregadiamente como a uma luz reguladora, sentir os órgãos vitais pulsar com menos veemência, cada vez mais devagar, como as pás de uma ventoinha que ainda rodam depois de a desligarmos, até à imobilidade total.
Pensava em tudo o que pudesse dar-me alento para me levantar: o anti-depressivo que me esperava todas as manhãs com a sua promessa melíflua de tranquilidade; um café escuro, bem quente, retemperador; qualquer coisa bonita para vestir; a expectativa de encontrar ao espelho, para variar, uma pele lisa e uns olhos brilhantes; um encontro prometedor, uma decisão inadiável, um compromisso inalterável. O trabalho. Não, nem sequer o trabalho. Na mecânica ronceira do desalento, todas as desculpas são possíveis. Do outro lado, alguém tinha a generosidade de acreditar.
Enrolava-me na roupa da cama e procurava o não lugar onde esperamos que o mundo nos esqueça. Tapava a cabeça com o lençol e deixava de fazer parte do mundo. Estava de fora, julgava eu. Só eu. Pateta. Como se eu não fosse mundo também, produto defeituoso dele. Sentia o corpo todo torcido da noite mal dormida num mau colchão, mas os membros doridos não me pediam movimento nem energia. Já os havia domado.
Cerrava os olhos e insistia na redenção do sono. Queria sonhos bons, mas ficaria contente se não os tivesse de todo, se os pesadelos que me carregavam as manhãs e me perseguiam durante o dia não se repetissem. Queria um daqueles sonos da infância cheios de esquecimento. Ocorriam-me imagens como esquecerem-me como a um dobrão de ouro no fundo do mar, resto de um naufrágio sem qualquer registo; dissolver-me como um torrão de açúcar em água morna, turvando-a de doçura, deixando de ser uma coisa para transformar-me em outra; ou acabar comigo como um pássaro que se estraçalha contra o motor de um avião.
O suicídio não foi, no entanto, uma opção. Foi possibilidade, subterfúgio do desespero. Se nada mais resultasse. Por essa altura, o que ia resultando mesmo eram as horas ou os dias, como aqueles, de suspensão. O mundo parava dentro de casa, o tempo não escorregava pelos objectos nem pelas pessoas, o pó não se acumulava, a fome e a sede nada pediam, os ruídos que se faziam sentir eram um coro confortável, a luz não nascia nem se apagava, não havia princípio nem fim de nenhum ciclo. Naquela bolha eu não era nada, não tinha identidade, idade, relações de parentesco, árvore genealógica, papéis a desempenhar, personagens a encarnar, sexualidade, não tinha capacidades nem limitações, direitos ou deveres. Não me era aposto nenhum rótulo. Não tinha gostos, nem vontades, nem cheiros, nem hábitos particulares de higiene. Não tinha armários cheios de roupa, de sapatos, de malas e de outros acessórios, fruto dos meus impulsos mais mundanos. Não tinha uma casa de banho cheia de cremes, perfumes e loções. Não era mulher. Não tinha género. Não tinha corpo e a mente era um grande balão vazio.

Respirava baixinho e decidia: hoje fico na cama a viver em silêncio.

bso Fragile wind by Nitin Sawhney

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

memória


Lembro-me de muitas auroras. As das insónias e as das noitadas. As primeiras pelo desespero, as outras pelo que calhava. Mas só de uma me lembro com o deslumbramento que é suposto devotarmos a certas manifestações da natureza. Porque era criança e quando adultos deixamo-nos dessas sensibilidades. Tínhamos deixado o país grande há pouco tempo e, agora, no país pequeno, trazíamos ainda o país grande nas almas e, sobretudo, no olhar. No país pequeno, em viagem de família para a pequeníssima aldeia de origem, insistíamos em que tudo fosse à escala antiga: grande carrinha para transportar a família que por esses tempos ainda se queria grande, antes das dissidências das mortes. Verão. As viagens faziam-se de noite, pela fresca, e todo o perto era ainda muito longe. Nós, crianças, dormíamos atrás, enquanto os outros, em camaradagem, contavam histórias, para fortalecer laços e afastar o sono. Acordei com o dia a nascer, com o sol a querer pôr-se azul, mas com um laranja forte e teimoso a sobrepor-se-lhe. Por trás da nova paleta de cores, pressentia-se ainda a noite. Era a primeira vez que via o céu assim, muito embora no país grande o céu fosse imenso e de todas as cores que alegram uma criança. Mas aquele foi o meu primeiro céu. Não o entendi logo, pois na timidez que me é atávica, não questionei ninguém. Só o entendi ontem. E só hoje o partilho.

bso Qualsevol nit pot sortir el sol by Albert Pla

domingo, 24 de agosto de 2008

luto


E o meu coração já não bate

na minha voz, de alegria ou de tristeza.

Tudo acabou... E a minha canção galopa

para dentro da noite vazia onde tu não estás mais.


Ana Akhmátova

bso Atmosphere by Joy Division

upside down


Depois de uma magoada madrugada e um doloroso acordar, hoje é domingo. Sinto-me literalmente assim.

bso The sky is broken by Moby

sábado, 23 de agosto de 2008

génio


Ao fim de três teimosos posts (ena!), que exigem de mim uma espécie de esforço terapêutico (ena!ena!), chegou a hora de falar do porquê do título deste blog, o que fará deste texto um bloco maior do que os outros. Não apresento as minhas mais sinceras desculpas nem peço a ninguém paciência para o inconveniente pela óbvia falta de plateia. “O náufrago” remete-nos para a imagem de alguém a quem coube em sorte ver-se lançado ao mar, à mercê de águas caprichosas, sem saber se acabará com os pulmões cheios de água (diz quem evidentemente não sabe que é uma morte santa), devorado por um monstro marinho (épico), recolhido pela tripulação de algum barco anjo que calhe em passar (ouvem-se sinos a rebate), atirado para a costa por uma maré redentora (que sorte!... ), mas destinado a viver uma vida de semi-animal a falar sozinho ou com as pedras (shit…). A analogia com a vida é evidente, daí o primeiro momento da minha escolha. Fútil, digamos. Num outro momento, é a minha homenagem à novela “O Náufrago”, de Thomas Bernhard, o austríaco que renegou a sua pátria, autor das minhas preferências negras. Não há motivo para preocupações, o facto nada diz sobre o meu temperamento: também tenho uma lista de autores luminosos. Mais pequenina, é certo. Bernhard dará certamente algumas voltas na tumba sempre que se vê referenciado em conversas amenas desde género, mas confiarei na sua brandura para perdoar-me. Afinal está morto, não é? É certo que neste registo de homenagem poderia ter escolhido qualquer um dos seus outros títulos optimistas como “Perturbação” ou “Extinção”, mas “O Náufrago” é mais consonante com o que vou tendo para dizer. A este propósito, I could kill a hundred times a day just to find something I would really want to say. Vêem, a questão do temperamento?
Enfim, “O Náufrago” de Thomas Bernhard é sobre Glenn Gould. Ou, com maior rigor, sobre um encontro a três: o deste genial pianista com o narrador do livro e a personagem Wertheimer, apelidada de “náufrago”. Todos eles têm o desejo de se tornarem virtuosos do piano, mas apenas um atinge a genialidade. Por causa das Variacões Goldberg de Bach. Quando Wertheimer ouve a execução de Glenn Gould, desiste imediatamente dos seus intentos por perceber que nunca executaria a obra daquela forma sublime. O narrador do livro também desiste e fecha a tampa do piano. Mas é Wertheimer quem entra em processo de naufrágio. Crendo-se sem talento para a música, entrega-se à melancolia. Depois, sem talento para a vida, deixa-se afundar, primeiro em teorizações filosóficas, depois no exercício da tirania sobre quem lhe é próximo. Por fim, suicida-se. Texto sobre a arte, a criação artística, a aniquilação do Bom sobre as pesadas botas do Genial, as consequências banais, mas brutais, da mediocridade e do fracasso, com ele Bernhard semeia-nos na consciência ervas venenosas: o desejo de ser outro destrói o ser humano, a ambição pela perfeição acaba-nos de vez com a pouca tranquilidade e a pouca paz de espírito que alguma vez consigamos alcançar. O mundo está cheio de náufragos e as tábuas de salvação a que podemos lançar a mão são cada vez mais frágeis, escassas e fugidias.

bso We are not stars by Perry Blake

queda


Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos quando sonhamos que viajamos juntos num avião que se despenha e não apertamos as mãos um do outro com muita força?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se dormimos na mesma cama e os maus sonhos nos perseguem todas as noites?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se vivemos juntos e mal pomos o pé dentro de casa temos logo vontade de recuar?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se jantamos juntos e a comida sabe mal e o vinho é amargo?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se prometemos partilhar e apenas proferimos palavras de circunstância?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se anunciámos um ao outro a alegria e não há risos nem música?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se trocámos os nossos corpos até se confundirem e agora não resta mais que a doença?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se nos escreveu as mais belas palavras de amor e hoje já nada tem para dizer?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se nos ofereceu protecção e abrigo e depois tingiu as paredes de mentira?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se lhe fizemos a dádiva do resto da nossa juventude e rapidamente nos deixou cair?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se jurou que o nosso amor havia sido abençoado e os deuses nos esqueceram?

Muito. E fugimos.



bso The suffering by Belcanto

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

teia

O que fazer quando a vida está tão enredada como aquele jogo infantil que fazíamos entre uma e outra mão com um fio de lã e que chegado ao terceiro ou quarto passo não apresentava já solução possível? Na impaciência e optimismo de crianças, depressa largávamos o fio e nos lançávamos com renovado entusiasmo a outra brincadeira. Enterrar bichos-de-conta em caixas de fósforos, por exemplo. Com direito a velório e lágrimas de teatrinho e tudo. Os enredos da vida adulta são mais intrincados. Nem sempre tenho à mão um fio para relembrar o jogo, ao jeito de exercício de paciência, não gosto de insectos de qualquer espécie, mesmo que seja para enterrá-los vivos, e o velório da minha vida acompanhar-me-á até à morte. Já as lágrimas de hoje são verdadeiras. Pois é: tudo é mais difícil e agora é mesmo a doer. No entanto, por entre a teia que sinto ter descido perfidamente sobre mim nos últimos dias, e que me tem tolhido os movimentos e toldado a razão, houve duas tábuas de salvação a assinalar: 1) tomei uma decisão (pasmai: uma!) que não enuncio por pudor; e 2) abri um pouco o reposteiro pesado por trás do qual se escondem sentimentos que tenho guardado como objectos inúteis num sotão empoeirado. Da mesma forma que se descobre que esses objectos podem ganhar nova vida por se revelarem essenciais ou por voltarem a estar na moda, redescobri um sentimento puro e quase intocado, apesar dos tombos e tropeções que, coitado, vem sofrendo. Recuperei-o, limpei-o bem limpinho, fiz-lhe o embrulho mais festivo de que fui capaz e como uma carochinha espero à janela que passe a pessoa a quem possa oferecê-lo por saber que o tratará como verdadeira preciosidade. Bónus para o náufrago: continua a haver um copo para beber.

bso The jeweller by This Mortal Coil

great opening


Inauguro este blog. O título do post é um pouco arrogante,
mas apetecia-me qualquer coisa em grande, hoje. São 16.56 m de acordo com o GMT e ainda não vislumbro a tábua de salvação do dia. Por enquanto, há um copo à minha frente que me defende das agressões de umas férias praticamente forçadas (diz-se dos trabalhos que, esses sim, é que são forçados, não é?). É inegável: não consigo viver de acordo com os ritmos de Verão. Destesto quando a rotação da terra chega a este ponto. O sol em excesso, a excitação das debandadas em direcção a lugares sobrelotados, a ansiedade de querer fazer algo que se coadune com a alegada descontracção da estação, a alegria e os chinelos, ambos de plástico, causam-me estranheza. Não me peçam alternativas, pois também as não tenho. Por isso criei o blog, para confundir o tédio. Resta-me saber se a estratégia resulta. Pois se toda a gente tem um é porque algum bem nos deve fazer! Ou porque causa dependência nestes seres tão propensos à adição, tão necessitados de um maná, de uma terra prometida, que somos todos nós? Será como uma droga, uma experiência nova, divertida, ousada, limite? Bom, são demasiadas considerações para mim, novata nestas andanças e até hoje reticente em absoluto quanto à validade destes espaços. Voltarei mais vezes, está prometido a mim mesma. Aguardarei pelas próximas horas, desejando com muita força que algo me chame a atenção, me prenda o olhar e os outros sentidos também. Algo que depois possa verter aqui como verdadeira tábua de salvação para as nossas vidas revoltas e encrespadas e não esta tentativa desajeitada de inaugurar um espaço com dignidade. Na verdade, sou uma estranha na minha própria festa. Trago o vestido e os sapatos demasiado apertados.

bso Ouverture by Etienne Daho