terça-feira, 30 de dezembro de 2008

finais


O fim de ano não nos é exterior. Não é a celebração, a cenografia perfeita de uma gala. O fim de ano é mais rústico. Passa-se nas nossas entranhas, num balanço entre o que conseguimos ou não digerir nestes últimos meses e que forças nos restam para o que aí vem. Não é o brilho elegante dos copos que se erguem na festa; são as manchas toscas de humidade no nosso coração. Não é a indumentária esmerada, pensada ao pormenor; é a forma como o tecido da pele ainda nos assenta. Não é o banquete robusto e variado, sofisticado; é aquilo que o nosso estômago se sente capaz de aguentar sem se revolver ainda mais. Não são os votos de felicidades futuras; é o contrato sem termo que firmamos connosco para vivermos mais alguns anos. Não são as doze passas e os doze desejos; é um sem número de desgostos. A ter equivalente exterior, o fim de ano seria um salão de baile cheio de fantasmas, com as paredes descascadas e o soalho gasto. A música seria uma memória muito, muito antiga.

bso Take this waltz by Leonard Cohen

domingo, 28 de dezembro de 2008

azar


Os princípios deterioram-se. Os valores adulteram-se. As crenças apodrecem. As prioridades coalham. Os gestos importantes mofam. A verdade ganha gorgulho. Toda a gente tem um prazo de validade.

bso Qu'est ce que ça peut faire par Benjamin Biolay

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

o natal é doce


No café, à mesa do pequeno almoço, as senhoras bebem galões e devoram sonhos. Eu bebo um café negro como a minha disposição e regurgito os pesadelos da noite.

bso Couleur café par Serge Gainsbourg

domingo, 14 de dezembro de 2008

odeio aforismos


O dia precedente é o mestre do dia seguinte.

Píndaro

bso Air on the G String de J.S.Bach

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

não particularmente


Inaugurei já o meu espírito natalício deste ano. Que é como quem diz: abriu a época oficial da frivolidade. Já corro para a compra dos presentes tão desvairadamente como todos aqueles que podem. Faço e refaço listas com os nomes dos que pretendo presentear. O número dos listados é cada vez menor. A triagem que vamos fazendo pela vida fora reflecte-se nas listas de Natal. Sinto-me mais em paz nesta época? Não particularmente. Sinto-a como uma altura de reflexão, de balanço? Não particularmente. Estou mais de acordo com o mundo? Não particularmente. Mas gosto de ver sorrisos nos rostos que amo e o contentamento pueril de quem abre um presente. O Natal em família é também a altura de contar as cabeças. Quantos estamos - e em que estado? E quantos já não estão - e por que impedimentos? Repetem-se as mesmas histórias de sempre, os comentários a que já nos habituámos, até os presentes que já sabemos de antemão ir receber. E é tudo tão bom porque é tão certo. O Natal não é matemática pura, mas é certamente estatística fiável.

bso Message to a friend by Pat Metheny

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

join the dark side


Há algo de tranquilizador, ainda que invasivo, no facto de sermos olhados de forma penetrante. Sobretudo se esse olhar nos diz ao instinto que percebeu e aceitou que a nossa vida é um quarto de cortinas opacas e que o nosso coração bate na escuridão. E nós, seres de brumas e sombras e nuvens escuras, agradecemos para a vida a clarividência e a chama.

bso Ma mémoire sale by Louis Garrel