sexta-feira, 24 de abril de 2009

festim


Perturba-me sobremaneira a cabotinice dos que se auto-elogiam, dos que puxam de galões insignificantes e que insistem, por vezes de enviesadas formas, em conversas que apenas têm como finalidade chamar a atenção sobre si e para predicados que mais ninguém vê. Este jogo infecundo traz naturalmente consigo uma bateria de expressões ocas, que nada querem dizer para além da intenção que nelas se põe. Uma delas, que hoje me feriu na sua pretensão de evidenciar a objectividade, a singeleza, a rectidão de quem tão seguramente a evocava é "Eu cá sou pão pão, queijo queijo". Pobre criatura incompleta. Então e o vinho?

bso History of the insipid by Michael Nyman

a data e o seu contrário


Liberdade, soberania do povo, direitos, progresso, evolução das mentalidades. A enumeração importa menos do que a lista das compras. Os fantasmas do passado continuam a fazer-nos companhia, instilando-nos a saudade de quando não tínhamos o trabalho e a responsabilidade de escolher. Continuamos a elegê-los, a eles, aos que deviam ter aprendido com a mudança, mas que insistem no apego às velhas cartilhas. Este país é um hotel assombrado à espera que alguma mão de instinto purificador lhe deite fogo.

bso Avril au Portugal par Georges Moustaki

terça-feira, 21 de abril de 2009

now what?


A noção de passatempo intriga-me. Não é estranho que a forma de gozarmos os tempos livres seja ver o tempo passar? Ausentamo-nos das preocupações, libertamos o espírito e procuramos o prazer na mesma dimensão do resto: a dos relógios que avançam inexoravelmente a um ritmo que, por muito que queiramos, nunca é diferente.

bso Photographic Memories by Ennio Morricone

segunda-feira, 20 de abril de 2009

bizarrias


Durante o dia, a cacofonia, os ruídos desarranjados da cidade. Como numa orquestra mal dirigida de instrumentos dissidentes, os sons ofendem. Depois, quando o silêncio deveria ser conforto e melopeia, a bizarria: a noite é um enorme tambor chinês a rufar dentro da minha cabeça. Ao jeito de espectáculo de prestidigitação, criando efeito de suspense, a preparar a surpresa que a manhã seguinte sempre me reserva. Quando o passe de mágica acontece, o coelho que sai da cartola vem invariavelmente morto.

bso Taya Tan by Pink Martini

sábado, 18 de abril de 2009

long gone


Ontem falou-se de ti e não me lembrei que dia seria hoje. Só esta manhã a data se impôs. Por isso, a ti, o único que não me pode ler, feliz aniversário.

bso Nessun Dorma from Turandot by Giacomo Puccini

quinta-feira, 16 de abril de 2009

medusa


Resumo da ópera em cartaz durante toda a semana: quando se cria o monstro, não é possível livrarmo-nos dele. Fim de drama.

bso Fake empire by The National

quarta-feira, 15 de abril de 2009

antigamente


Chove em Abril e já não sabemos se deve ser realmente assim, se era assim ou desde quando deixou de ser assim. Já nada é como antigamente, diz quem se lembra da anterior ordem das coisas. O clima, a paisagem,as pessoas. A vida, enfim. E a verdade é como uma retrete pública: limpa-se à noitinha para voltar a sujar-se pela manhã.

bso This mess we're in by PJ Harvey & Thom Yorke

sábado, 11 de abril de 2009

a praga que cada um merece


O medo de que o céu nos caia em cima é um atavismo vindo do tempo das tempestades imensas que não sabíamos explicar. Se tal acontecesse deveras, o chão perderia também o seu significado. E quando o tecto nos cai literalmente em cima da cabeça? Verificam-se os receios antigos, sentimo-nos à deriva e perdemos o pouco sentido de segurança que nos resta. Nesta época não é estranho evocar, a par de traições e delações já mencionadas, o aviso dos castigos sobrenaturais. Tenho tido as minhas pragas de insectos sob a forma de vitupérios. É certo que não tenho gado nem filho primogénito para matar, mas o meu sangue talha e a frágil esperança gela. Não sou egípcia nem judia e gostava que a compensação pelos bons gestos não conhecesse pátria. E, já agora, que a consequência da maldade não fosse terra de ninguém.

bso Un bel di vedremo from Madama Butterfly by Giacomo Puccini

longe da vista


Do teu corpo só lembro os contornos, os limites. Esqueci-lhe a massa, a densidade, o que nele me faz despertar o delírio. E se regressasses para que a memória volte a ser grata?

bso Por una cabeza by Carlos Gardel

quinta-feira, 9 de abril de 2009

ritual


A Páscoa é a depressão instalada deste lado do mundo, o da dita cristandade. Ambiente propício a considerações sobre a passagem, o renascimento e a renovação, para quem insiste na fé. Dias que lembram a traição e quem se vende por um punhado de moedas, digo eu, incrédula. Quem me dera o outro lado do mundo, onde os calendários são mais benevolentes.

bso One by U2

quarta-feira, 8 de abril de 2009

modo de preparação


Primeiro perde-se o pé. Depois, no redemoinho, o corpo é sacudido de um lado para o outro, como se se desmembrasse. Em seguida, a onda de mal estar atira-nos os pedaços para o local onde tentaremos, atabalhoadamente, recompor os cacos. A dor enforma os ingredientes. O resultado, pouco digno de ser mostrado, não varia. A natureza humana - podre - segue sempre a mesma receita.

bso Prisons by Silent Poets

domingo, 5 de abril de 2009

idades


Há algo da minha vida nesta praia que hoje revisito, em romaria da memória. As rochas são as mesmas. A areia compõe-se dos mesmos minerais, mas em menor substância. A dança perpétua e insinuante das marés traz luas mais felizes que outras. E a inevitável erosão imprime à paisagem a fina tela da descoloração e do desbotamento. O destino não faz visitas anunciadas ao domicílio, aparece-nos de surpresa ao fim de uma estrada, em domingos de tédio.

bso Sea swallow me by Cocteau Twins

quarta-feira, 1 de abril de 2009

sortilégio


Sou abordada na rua pela cigana que tenta vender "óculos, menina?", "carteiras e lenços lindos". Não, obrigada. "Pode, ao menos, falar com a cigana? A cigana diz-lhe que precisa de muita sorte". Aí, estaco. "Tem para vender? Não?..." Quando viro costas, ouço cair atrás de mim, neste glamouroso dia de sol, uma chuva de insultos que esbarra na minha impermeabilidade não sazonal.

bso There is a light that never goes out by The Smiths