domingo, 31 de agosto de 2008

shall we dance?


Enquanto o meu outro eu dança, dando corpo à inquietação, este, o de todos os dias, o que não sabe dançar mas traz a música dentro de si, observa de um canto e enumera todas as razões da espera. E conclui, confessando-se: agora sim.

bso Dance me to the end of love by Leonard Cohen

sábado, 30 de agosto de 2008

dias felizes


É ao fim do dia que o autocarro rasga a paisagem urbana com maior violência. Eu estou de fora, com o ruído e o movimento da cidade a abaterem-se sobre mim, e vejo lá dentro os sonhos desfeitos de gente desfeita. O cansaço e a desilusão roubaram-lhes o brilho aos olhos, o fulgor à pele, o viço aos cabelos. Com os pés bem assentes no passeio, pergunto-me quantos daqueles que por aqui passam no seu percurso quotidiano terão já pisado chão diferente deste. Ponho-me a imaginar alguém que folheia uma revista mundana e que apanha aqui e ali as migalhas da improvável vida feliz de um colunável. E finge, pelo curto tempo de um artigo ou de uma pequena história, ser outro. Ponho-me a pressentir o movimento cadenciado de alguém, que por vício ou por não saber que outras coisas mais felizes podem duas mãos fazer, tricota uma peça que não ornamentará nada nem ninguém. E que com esse movimento repetitivo enfurece quem se senta ao seu lado. Depois lembro-me de que todos os outros, os que tiveram a sorte de conseguir um lugar onde antecipar o descanso da noite ou os que ainda terão de arrastar as suas penas de pé, devem permanecer com o olhar parado, no estupor dos descrentes. Ou perscrutam-se na empatia do desespero. Ainda no mesmo sítio, já o autocarro se afasta, divido-me entre a preocupação de não querer ser como esta gente e a improbabilidade de o não ser. Pelo menos hoje estou de fora, no passeio, e posso fechar os olhos e imaginar-me no adro de uma velha igreja, tão cheia de todas as memórias boas e más, afastada no meu espaço e do meu tempo. O vento refresca-me e cola-me os cabelos à cara. O sino da igreja toca e eu sinto-me quase, quase bem. Mesmo os dias maus têm um fim. Atravesso a passadeira para o outro lado da rua, onde te encontrarei. E o nosso abraço será apertado e irá redimir-nos da tristeza que ninguém deveria ter de sofrer.

bso Black water by Rain Tree Crow

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

wild river


Não se foge da morte nem do amor. Pela inevitabilidade. E quando o amor nos fez um sinal inequívoco, seguimo-lo. Pela noite dentro, servindo-se dos nossos corpos cansados, foi-nos marcando profundamente, deixando-nos sulcos indelevéis que se somam agora à mancha das nossas peles já tatuadas. O amor fez-nos o sinal esperado e não o explicámos, não o entendemos, não o quantificámos, não o qualificámos para além do sublime que é sempre. Nesse rio para onde nos atirou, o amor gritou-nos da margem, em jeito de aviso, já seguíamos nós pela correnteza forte, que não há bons nem maus. Há os que se amam e sentem as almas a transbordar dos lábios quando estes se tocam. Sim, o amor é o único verdadeiro pecado porque até o diabo acredita em deus. Depois, do toque de flores das nossas mãos nasceram os frutos de sempre e os corações reuniram-se em prece conjunta.E o resto da noite foi uma bebedeira de sono e harmonia.

bso Os nossos nomes sussurrados por entre o tumulto

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

carta de amor


Eram bonitas as cartas de amor que meu pai escrevia a minha mãe nos tempos de namoro. Li-as nas vésperas de um Natal de há muito tempo, quando procurava presentes escondidos. Essa era uma das minhas fantasias infantis, acreditar em surpresas incríveis remetidas ao secretismo dos fundos dos armários. A ansiedade já me segredava, com maldade, que não devemos aguardar quietos o que nos vai caber em sorte, que devemos precipitar os acontecimentos. Mais tarde na vida receberia a lição adulta sobre o tema: os finais não são felizes.
Encontrei a curiosa caixinha de cartão numa gaveta de lenços, tão fora de moda como as cartas de amor. O rebordo dourado chamou-me a atenção. Na tampa um desenho mal impresso de um casal de jovens enamorados, em jeito muito anos 70, abonecado e piroso. Lá dentro, várias folhas de papel colorido dobradas em quatro ou em oito. Cada embrulho, uma carta, palavras novas, sentimentos novos. Hoje, não consigo reproduzir uma única palavra, uma ideia, uma emoção ali impressas. O que retenho, o que me remete para essas cartas, é a sua atmosfera, o mundo próprio que as palavras encadeadas circunscrevem, impermeável. A solidez desse mundo não tem equivalente no exterior.
Cometi a inconfidência de mostrá-las às amigas de então. Porque há uma altura em que, a par de outras grandes verdades, acreditamos nas cumplicidades incorruptíveis e eternas. Ávidas como eu de crescer, satisfiz-lhes também a curiosidade das primeiras descobertas. Partilhámos o espanto e a expectativa. Efabulámos sobre as nossas vidas futuras. A possibilidade estava toda lá. A perfeição estaria lá. A felicidade estaria lá. A beleza estaria lá. E a inocência tinha lugar cativo na fila da frente.
Durante muito tempo, reli essas cartas, até que deixaram de me interessar. Abandonei os refúgios e mais tarde comecei eu própria a escrever as minhas cartas, nem sempre com um objecto de afecto definido, mas também pelo exercício do prazer adolescente que é escrever sobre o amor. E esperava impacientemente que alguém mas escrevesse também. Generosas, contidas, irritantes, ansiosas, raivosas, aborrecidas, nervosas, iradas, dramáticas, suicidas, mas todas essenciais, vitais. Maiores que tudo. Enchendo-me a vida de forma a não caber mais nada. E o nome aposto no fim era o nome do próprio amor. Peremptório e definitivo. Pelo menos até à carta seguinte.
Trocar cartas de amor é trocar corações. A respiração que suspendemos na sua leitura é a nossa alma a desiquilibrar-se à beira do abismo. A boca seca que nos deixa a certeza de sermos amados – pois se o escreveu!... – é o preâmbulo do desejo que nos vai arrebatar. A consumação daquelas palavras marcar-nos-á a pele a ferro e a nossa memória em pânico viajará de volta a elas sempre que a vida nos voltar a tirar o tapete.
A carta de amor que recordo com mais dor, e que encontrei recentemente dentro de um livro do Moravia há muito atirado para as prateleiras de trás, chamava pela minha presença de luz e cor (e hoje sou só sombras!) para manter afastada uma tendência obscura de reclusão e desprendimento de quem a assinava. Faltei a esse encontro. Mais tarde, por razões ainda hoje desconhecidas por todos, o assinante cortava os pulsos no seu apartamento em Lisboa. Para mim, a falta de cartas de amor facilitou-lhe o compadrio com a morte.
Também para mim veio o tempo da condenação. Das desilusões. Trazer o Pessoa na ponta da língua acusando que “todas as cartas de amor são ridículas”. Decretar em todas as conversas de início da idade adulta a morte do romantismo e a imperiosa necessidade da liberdade de movimentos. A autodefesa. A validação social. A negação do lugar do amor, aqui, entre duas pessoas. A negação dos lugares do amor, que são toda a parte.
Perdi-me em amores imerecidos e não mereci nenhum. Ganhei medo à vida, às pessoas, às promessas sem força de lei. Como nos meus terrores nocturnos de criança, sentia permanentemente a absoluta certeza de que algo terrível ia acontecer. Recomecei a procurar refúgios. Fechei-me, pouco a pouco, numa gaiola imaginária. Quase sempre, a prisão conforta-me. Mas, por vezes, atiro-me contra as grades, à procura de uma saída que não estou certa de querer encontrar. Firo-me e saro-me, uma e outra vez, mal me dando conta dos pedaços de mim que vão ficando pelo caminho. Não os recuperarei. Já nem tudo é possível.
Não voltei a ver a caixa das cartas de amor dos meus pais. Nem a procurá-la, por excesso de pudor. Estou certa de que a minha mãe a guarda, sem a emoção de antes, mas com a indiferença terna que prodigalizamos aos objectos que sempre estiveram na nossa vida. Nem me teria lembrado dela se hoje não estivesse triste. Se hoje não estivesse à espera que uma carta de amor me salve da solidão e do tédio. Pode ser anónima.

bso Love letter by Nick Cave

do silêncio


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava!
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...
já não se passa absolutamente nada.

E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos mais nada para dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
E o passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

bso De cara a la pared by Llasa

terça-feira, 26 de agosto de 2008

fraca mecânica


Houve manhãs em que tive vontade de morrer ao acordar. Morrer mesmo. Não a vontade de morrer que metaforiza a vergonha, a humilhação, a dor da perda, o cansaço do quotidiano. Quis deixar de respirar, deixar os olhos fechar-se sem combater o peso das pálpebras, como quando adormecemos, apagar-me escorregadiamente como a uma luz reguladora, sentir os órgãos vitais pulsar com menos veemência, cada vez mais devagar, como as pás de uma ventoinha que ainda rodam depois de a desligarmos, até à imobilidade total.
Pensava em tudo o que pudesse dar-me alento para me levantar: o anti-depressivo que me esperava todas as manhãs com a sua promessa melíflua de tranquilidade; um café escuro, bem quente, retemperador; qualquer coisa bonita para vestir; a expectativa de encontrar ao espelho, para variar, uma pele lisa e uns olhos brilhantes; um encontro prometedor, uma decisão inadiável, um compromisso inalterável. O trabalho. Não, nem sequer o trabalho. Na mecânica ronceira do desalento, todas as desculpas são possíveis. Do outro lado, alguém tinha a generosidade de acreditar.
Enrolava-me na roupa da cama e procurava o não lugar onde esperamos que o mundo nos esqueça. Tapava a cabeça com o lençol e deixava de fazer parte do mundo. Estava de fora, julgava eu. Só eu. Pateta. Como se eu não fosse mundo também, produto defeituoso dele. Sentia o corpo todo torcido da noite mal dormida num mau colchão, mas os membros doridos não me pediam movimento nem energia. Já os havia domado.
Cerrava os olhos e insistia na redenção do sono. Queria sonhos bons, mas ficaria contente se não os tivesse de todo, se os pesadelos que me carregavam as manhãs e me perseguiam durante o dia não se repetissem. Queria um daqueles sonos da infância cheios de esquecimento. Ocorriam-me imagens como esquecerem-me como a um dobrão de ouro no fundo do mar, resto de um naufrágio sem qualquer registo; dissolver-me como um torrão de açúcar em água morna, turvando-a de doçura, deixando de ser uma coisa para transformar-me em outra; ou acabar comigo como um pássaro que se estraçalha contra o motor de um avião.
O suicídio não foi, no entanto, uma opção. Foi possibilidade, subterfúgio do desespero. Se nada mais resultasse. Por essa altura, o que ia resultando mesmo eram as horas ou os dias, como aqueles, de suspensão. O mundo parava dentro de casa, o tempo não escorregava pelos objectos nem pelas pessoas, o pó não se acumulava, a fome e a sede nada pediam, os ruídos que se faziam sentir eram um coro confortável, a luz não nascia nem se apagava, não havia princípio nem fim de nenhum ciclo. Naquela bolha eu não era nada, não tinha identidade, idade, relações de parentesco, árvore genealógica, papéis a desempenhar, personagens a encarnar, sexualidade, não tinha capacidades nem limitações, direitos ou deveres. Não me era aposto nenhum rótulo. Não tinha gostos, nem vontades, nem cheiros, nem hábitos particulares de higiene. Não tinha armários cheios de roupa, de sapatos, de malas e de outros acessórios, fruto dos meus impulsos mais mundanos. Não tinha uma casa de banho cheia de cremes, perfumes e loções. Não era mulher. Não tinha género. Não tinha corpo e a mente era um grande balão vazio.

Respirava baixinho e decidia: hoje fico na cama a viver em silêncio.

bso Fragile wind by Nitin Sawhney

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

memória


Lembro-me de muitas auroras. As das insónias e as das noitadas. As primeiras pelo desespero, as outras pelo que calhava. Mas só de uma me lembro com o deslumbramento que é suposto devotarmos a certas manifestações da natureza. Porque era criança e quando adultos deixamo-nos dessas sensibilidades. Tínhamos deixado o país grande há pouco tempo e, agora, no país pequeno, trazíamos ainda o país grande nas almas e, sobretudo, no olhar. No país pequeno, em viagem de família para a pequeníssima aldeia de origem, insistíamos em que tudo fosse à escala antiga: grande carrinha para transportar a família que por esses tempos ainda se queria grande, antes das dissidências das mortes. Verão. As viagens faziam-se de noite, pela fresca, e todo o perto era ainda muito longe. Nós, crianças, dormíamos atrás, enquanto os outros, em camaradagem, contavam histórias, para fortalecer laços e afastar o sono. Acordei com o dia a nascer, com o sol a querer pôr-se azul, mas com um laranja forte e teimoso a sobrepor-se-lhe. Por trás da nova paleta de cores, pressentia-se ainda a noite. Era a primeira vez que via o céu assim, muito embora no país grande o céu fosse imenso e de todas as cores que alegram uma criança. Mas aquele foi o meu primeiro céu. Não o entendi logo, pois na timidez que me é atávica, não questionei ninguém. Só o entendi ontem. E só hoje o partilho.

bso Qualsevol nit pot sortir el sol by Albert Pla

domingo, 24 de agosto de 2008

luto


E o meu coração já não bate

na minha voz, de alegria ou de tristeza.

Tudo acabou... E a minha canção galopa

para dentro da noite vazia onde tu não estás mais.


Ana Akhmátova

bso Atmosphere by Joy Division

upside down


Depois de uma magoada madrugada e um doloroso acordar, hoje é domingo. Sinto-me literalmente assim.

bso The sky is broken by Moby

sábado, 23 de agosto de 2008

génio


Ao fim de três teimosos posts (ena!), que exigem de mim uma espécie de esforço terapêutico (ena!ena!), chegou a hora de falar do porquê do título deste blog, o que fará deste texto um bloco maior do que os outros. Não apresento as minhas mais sinceras desculpas nem peço a ninguém paciência para o inconveniente pela óbvia falta de plateia. “O náufrago” remete-nos para a imagem de alguém a quem coube em sorte ver-se lançado ao mar, à mercê de águas caprichosas, sem saber se acabará com os pulmões cheios de água (diz quem evidentemente não sabe que é uma morte santa), devorado por um monstro marinho (épico), recolhido pela tripulação de algum barco anjo que calhe em passar (ouvem-se sinos a rebate), atirado para a costa por uma maré redentora (que sorte!... ), mas destinado a viver uma vida de semi-animal a falar sozinho ou com as pedras (shit…). A analogia com a vida é evidente, daí o primeiro momento da minha escolha. Fútil, digamos. Num outro momento, é a minha homenagem à novela “O Náufrago”, de Thomas Bernhard, o austríaco que renegou a sua pátria, autor das minhas preferências negras. Não há motivo para preocupações, o facto nada diz sobre o meu temperamento: também tenho uma lista de autores luminosos. Mais pequenina, é certo. Bernhard dará certamente algumas voltas na tumba sempre que se vê referenciado em conversas amenas desde género, mas confiarei na sua brandura para perdoar-me. Afinal está morto, não é? É certo que neste registo de homenagem poderia ter escolhido qualquer um dos seus outros títulos optimistas como “Perturbação” ou “Extinção”, mas “O Náufrago” é mais consonante com o que vou tendo para dizer. A este propósito, I could kill a hundred times a day just to find something I would really want to say. Vêem, a questão do temperamento?
Enfim, “O Náufrago” de Thomas Bernhard é sobre Glenn Gould. Ou, com maior rigor, sobre um encontro a três: o deste genial pianista com o narrador do livro e a personagem Wertheimer, apelidada de “náufrago”. Todos eles têm o desejo de se tornarem virtuosos do piano, mas apenas um atinge a genialidade. Por causa das Variacões Goldberg de Bach. Quando Wertheimer ouve a execução de Glenn Gould, desiste imediatamente dos seus intentos por perceber que nunca executaria a obra daquela forma sublime. O narrador do livro também desiste e fecha a tampa do piano. Mas é Wertheimer quem entra em processo de naufrágio. Crendo-se sem talento para a música, entrega-se à melancolia. Depois, sem talento para a vida, deixa-se afundar, primeiro em teorizações filosóficas, depois no exercício da tirania sobre quem lhe é próximo. Por fim, suicida-se. Texto sobre a arte, a criação artística, a aniquilação do Bom sobre as pesadas botas do Genial, as consequências banais, mas brutais, da mediocridade e do fracasso, com ele Bernhard semeia-nos na consciência ervas venenosas: o desejo de ser outro destrói o ser humano, a ambição pela perfeição acaba-nos de vez com a pouca tranquilidade e a pouca paz de espírito que alguma vez consigamos alcançar. O mundo está cheio de náufragos e as tábuas de salvação a que podemos lançar a mão são cada vez mais frágeis, escassas e fugidias.

bso We are not stars by Perry Blake

queda


Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos quando sonhamos que viajamos juntos num avião que se despenha e não apertamos as mãos um do outro com muita força?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se dormimos na mesma cama e os maus sonhos nos perseguem todas as noites?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se vivemos juntos e mal pomos o pé dentro de casa temos logo vontade de recuar?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se jantamos juntos e a comida sabe mal e o vinho é amargo?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se prometemos partilhar e apenas proferimos palavras de circunstância?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se anunciámos um ao outro a alegria e não há risos nem música?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se trocámos os nossos corpos até se confundirem e agora não resta mais que a doença?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se nos escreveu as mais belas palavras de amor e hoje já nada tem para dizer?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se nos ofereceu protecção e abrigo e depois tingiu as paredes de mentira?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se lhe fizemos a dádiva do resto da nossa juventude e rapidamente nos deixou cair?

Quão distantes estamos de alguém que diz amar-nos se jurou que o nosso amor havia sido abençoado e os deuses nos esqueceram?

Muito. E fugimos.



bso The suffering by Belcanto

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

teia

O que fazer quando a vida está tão enredada como aquele jogo infantil que fazíamos entre uma e outra mão com um fio de lã e que chegado ao terceiro ou quarto passo não apresentava já solução possível? Na impaciência e optimismo de crianças, depressa largávamos o fio e nos lançávamos com renovado entusiasmo a outra brincadeira. Enterrar bichos-de-conta em caixas de fósforos, por exemplo. Com direito a velório e lágrimas de teatrinho e tudo. Os enredos da vida adulta são mais intrincados. Nem sempre tenho à mão um fio para relembrar o jogo, ao jeito de exercício de paciência, não gosto de insectos de qualquer espécie, mesmo que seja para enterrá-los vivos, e o velório da minha vida acompanhar-me-á até à morte. Já as lágrimas de hoje são verdadeiras. Pois é: tudo é mais difícil e agora é mesmo a doer. No entanto, por entre a teia que sinto ter descido perfidamente sobre mim nos últimos dias, e que me tem tolhido os movimentos e toldado a razão, houve duas tábuas de salvação a assinalar: 1) tomei uma decisão (pasmai: uma!) que não enuncio por pudor; e 2) abri um pouco o reposteiro pesado por trás do qual se escondem sentimentos que tenho guardado como objectos inúteis num sotão empoeirado. Da mesma forma que se descobre que esses objectos podem ganhar nova vida por se revelarem essenciais ou por voltarem a estar na moda, redescobri um sentimento puro e quase intocado, apesar dos tombos e tropeções que, coitado, vem sofrendo. Recuperei-o, limpei-o bem limpinho, fiz-lhe o embrulho mais festivo de que fui capaz e como uma carochinha espero à janela que passe a pessoa a quem possa oferecê-lo por saber que o tratará como verdadeira preciosidade. Bónus para o náufrago: continua a haver um copo para beber.

bso The jeweller by This Mortal Coil

great opening


Inauguro este blog. O título do post é um pouco arrogante,
mas apetecia-me qualquer coisa em grande, hoje. São 16.56 m de acordo com o GMT e ainda não vislumbro a tábua de salvação do dia. Por enquanto, há um copo à minha frente que me defende das agressões de umas férias praticamente forçadas (diz-se dos trabalhos que, esses sim, é que são forçados, não é?). É inegável: não consigo viver de acordo com os ritmos de Verão. Destesto quando a rotação da terra chega a este ponto. O sol em excesso, a excitação das debandadas em direcção a lugares sobrelotados, a ansiedade de querer fazer algo que se coadune com a alegada descontracção da estação, a alegria e os chinelos, ambos de plástico, causam-me estranheza. Não me peçam alternativas, pois também as não tenho. Por isso criei o blog, para confundir o tédio. Resta-me saber se a estratégia resulta. Pois se toda a gente tem um é porque algum bem nos deve fazer! Ou porque causa dependência nestes seres tão propensos à adição, tão necessitados de um maná, de uma terra prometida, que somos todos nós? Será como uma droga, uma experiência nova, divertida, ousada, limite? Bom, são demasiadas considerações para mim, novata nestas andanças e até hoje reticente em absoluto quanto à validade destes espaços. Voltarei mais vezes, está prometido a mim mesma. Aguardarei pelas próximas horas, desejando com muita força que algo me chame a atenção, me prenda o olhar e os outros sentidos também. Algo que depois possa verter aqui como verdadeira tábua de salvação para as nossas vidas revoltas e encrespadas e não esta tentativa desajeitada de inaugurar um espaço com dignidade. Na verdade, sou uma estranha na minha própria festa. Trago o vestido e os sapatos demasiado apertados.

bso Ouverture by Etienne Daho