segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

boletim meteorológico


Talvez nunca tivesse sido bem assim.
Talvez nunca tivesse existido uma diferença
nítida entre as estações do ano, uma linha
rigorosa a separar o inverno
e a primavera, o outono e o verão.
Porque a memória meteorológica é a mais
débil das memórias - pior que a memória
do amor, a memória das pessoas que desejámos
ou julgámos terem-nos amado
verdadeiramente. Mas é isso
que fica da infância: os dias de chuva
sucedendo-se um após o outro, ponto;
as flores imensas nos canteiros dos jardins, ponto;
as folhas dos plátanos nas alamedas,
primeiro amarelas, e depois
vermelhas, e depois castanhas, ponto;
um sol impiedoso a cair a pique
nos lancis das avenidas, ponto.
E assim é que está certo:
que a memória da infância
não seja traída pela estatística
e pelas evidências científicas
das alterações climáticas à escala global.
Mesmo nos dias claros, límpidos,
muito azuis, eu vejo uma ameaçadora nuvem
e recuso-me a não ter frio.

josé carlos barros

bso Strange weather by Marianne Faithful

sábado, 21 de fevereiro de 2009

o quarto infecto da mente


Há cabeças que deveriam ser seladas por falta de condições sanitárias. E se houvesse uma selecção natural mais digna do que a biológica, esta gente seria automaticamente excluída da cadeia alimentar. Se quisermos ainda abordar a teoria criacionista, estes montes de esterco personificados são mais uma das provas ineludíveis de que deus não existe.

bso No god anymore by Element of Crime

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

carnival is over



Pela primeira vez, o Carnaval assusta-me. Percebi que já não é a época para a qual guardamos a expiação de algumas das nossas tormentas. A mascarada, afinal, é todo o ano. Que o fingimento termine depressa. Que a procissão de aberrações passe a correr. Que o desfile de alarvidades seja impedido. Que as gárgulas parem de vomitar. Este ano o Carnaval fere-me. Que acabe antes mesmo de começar.

bso tema título deste post by Dead Can Dance

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

ab dementia


Desde criança que tenho um fascínio sobre o personagem arquetípico presente em inúmeras histórias e habitualmente porta-voz de uma moral duvidosa: a louca da aldeia. O meu interesse começa pelo entendimento do desamparo desta mulher. Pela intuição do seu desespero. Pelo reconhecimento da irreversibilidade das coisas. E pela sensação de catástrofe iminente que paira sobre a sua cabeça desgrenhada. A louca da aldeia é um ser vazio, despojado do Bem e do Belo. Não reconhece tempo algum senão o da ausência da mente, no qual ocorrem todos os devaneios. Não reconhece o espaço para além daquele que lhe é dado, por compaixão dos habitantes locais, para arrastar as suas misérias. O que resta nela é o instinto: o da sobrevivência e o da maldade pueril. Alimenta-se de restos e alimenta-se de vidas alheias. A sua vida não chega porque a sua vida é nada. A louca da aldeia também foi jovem, não há muito tempo. Era mestre-escola, moldava cabecinhas para o futuro da povoação. Chegou mesmo a publicar um pequeno opúsculo com o fruto da sua experiência. “Da Educação: Crescer para Fingir”. Casou, mas tinha o ventre seco. As suas desgraças começaram quando o marido fugiu com a cartomante de uma trupe maltrapilha de circo que por ali passou. Um dia foi vista a deixar a escola e os meninos para trás, gritando desvairadamente e insultando quem se lhe cruzava no caminho. Arregaçava as saias sem pudor e oferecia-se aos lavradores que, atónitos, terminavam mais uma jornada de trabalho. Foi-se-lhe o tino. Começou então a exercer a pequena tirania dos que perderam as barreiras do senso. Invadia cada quintal, cada casa, cada vida, pondo-se à espreita como uma fera esfaimada, indo depois berrar aos quatro ventos as intimidades de cada um, não iludindo a sua própria promiscuidade. Cuspia impropérios numa linguagem de carroceiro. Olhando-se ao espelho, a louca da aldeia achava-se bonita, pois a demência tolda e é generosa, não a deixando ver a sua derrocada e o seu ar de velha precoce. Como lhe havia ficado o gosto pelo papel impresso, negociou favores sexuais com o latagão aprendiz de tipógrafo, na pocilga das traseiras da oficina, em troca de uns panfletos em papel de refugo no qual vomitava os segredos dos aldeãos e que distribuía em cada casebre com a convicção da palavra final dos falsos profetas. Os seus conterrâneos abanavam a cabeça em desalento, com o mesmo olhar de piedade que lançavam aos animais feridos sem remissão que eram obrigados a abater. “Esta desgraçada não há-de ter bom fim”, vaticinavam. E como o povo é a voz de Deus, um dia a louca foi surpreendida, num dos seus passeios pela mata, por uma alcateia faminta que ali mesmo a devorou de forma a não deixar memória.

bso Crazy by Gnarls Barkley

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

má fortuna


A vida não é só uma compilação de decisões erradas, histórias acabadas e gente morta. Felizmente. Apesar dos tempos de novas repressões e de novos preconceitos, enche-nos de coragem a permissão que ainda vamos tendo para corrigir enquadramentos menos perfeitos. Porque há coisas sobre as quais ainda temos algum controlo, que podemos escolher ou afastar. Ou até, em desespero, remediar, disfarçar. A estupidez não é uma delas. Quem com ela foi baptizado pela fada má, está irremediavelmente condenado a cultivá-la. Sem subterfúgios, a estupidez vaza dos poros de todo o comportamento daquele cujo espírito (ou o vazio dele, com mais rigor) lhe dá guarida. É também o dote mais democrático, o mais prodigalizado neste plano da existência. E o único subsídio que é para a vida. Medra em qualquer solo, não escolhe géneros nem atributos especiais. Quando se é estúpido, não se pode ser mais nada, por muito que se tente ou se acredite ser diferente. Nem feio se consegue ser, pois a estupidez desfigura e deforma. Não há rosto, não há identidade. A fealdade vê-se assim privada do seu objecto. Há muito que abdiquei do meu quinhão social de estupidez. Neste caso, a vida foi-me imensamente generosa. E se há objectivo que persigo é livrar-me do lixo e dos escolhos. Quanto ao sentimento que me desperta a gente estúpida, esse é a mais pura das indiferenças.

bso Dare to be stupid by Weird Al Yancovic

sábado, 14 de fevereiro de 2009

palavras sós


Quem anel a anel há-de pôr-me a nu os dedos,
quando me arrancarão a camisa,
quando se verá torso e braço a braço
todo o peso apoiado à luz?
Alguém me tocará para que eu estanque.
Se tivesse escondido entre ojectos exaltados
uma estrela e o seu combustível.

Desfaçam devagar o que me liga
primeiro a cada estado do mundo,
depois à memória.
Desfaçam-me do nome, o grande coágulo de sangue,
umbigo que habilmente se desamarra.
Todas as coisas pequenas que me cercam,
para que servem elas? Desembaracem-me:
o cântaro cheio da força das dedadas,
o copo coriscando,
garfos e o seu fogo, facas e o seu fogo,
a carne profunda na minha carne pela boca devoradora,
louça e o seu fogo.
Alguém há-de saber de tanto fôlego junto.

Basta a mão direita para quebrar a água
misteriosamente, a mão
para devolver-me à fonte.
Não é preciso que seja raiada, essa pessoa
leve e potente, só que finque no meio da dança
um pau em brasa com a floração:
quero que me pare, que me abra.
Que use a chave da minha obscuridade.
Antes de me terem chamado com água dentro da pedra,
gosto amargo, unhas e dentes.

A seda com que teci a malha entre os pedaços humanos:
membros criando um espaço, respiradouros, anéis rudes
nas cabeças, uma beleza viva.
Alguém há-de tocar-me com um dedo, alguém
há-de pôr-me um selo.

herberto helder

bso Let´s go out tonight by Craig Armstrong & Paul Buchannan

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

fogo verde


As manhãs límpidas são mágicas como catedrais vazias. As manhãs límpidas têm voz e imploram-me tranquilidade. Num sussurro, sibilando. Depositam suavemente a sua luz contra o meu rosto, enrubescem-me de calor, criam halos nas pestanas e pegam-me fogo aos olhos. Enganadoramente, julgo-me capaz de tudo com essa energia. Estátua que ganha vida e sai do seu nicho. Que desfila imprudentemente pelo meio daqueles que têm ossos e sangue a atestar a sua humanidade. O tecido fino da ilusão rasga-se depressa à passagem de uma nuvem pesada e cheia de água. E volto à minha existência de pedra no templo profanado.

bso Green eyes by Pascal Comelade & PJ Harvey

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

morning glory


Despertador. Coragem para saltar da cama para o mundo. Casa de banho. Espelho. Careta. Biologia. Banho. Cobrir o corpo, às vezes com vaidade. Café. Rua. Se iniciamos o dia com as fórmulas estafadas dos gestos repetidos até à náusea, como esperar mais e melhor das horas que se seguem? Nas manhãs de sol como a de hoje traímos a descrença e voltamos a colocar a fé nos sítios a que pertence. Num olhar de milagre, por exemplo. Ou numa gargalhada sem sujidade. E não nos custa acreditar no improvável. Que amanhã não trará erros e julgamentos. Que amanhã não será apenas mais um punhado de terra atirado sobre o cortejo dos corpos fatigados que capitulam em cada ocaso.

bso Let down by Radiohead

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

sede


Mais do que é saudável, rodeamo-nos muitas vezes de pessoas erradas, estéreis, que amarram em nós, com fio grosso, o enxerto da vileza e da superficialidade. Que nos abrem a pele em sulcos por onde arrancam o que de pior temos. Impulsivamente, atribuímos a culpa a erro de casting. Mas é pior: a culpa é nossa e a inspiração não deveria vir-nos do drama amador e mal escrito de teatro de bairro, mas sim dos episódios honestos da vida selvagem. Trazemos as feridas demasiado abertas e já devíamos saber que é da índole dos tubarões perseguir o cheiro a sangue. Em extremo, somos aqueles que, na sua jornada, vislumbram entre a multidão que assiste à nossa passagem apenas um ou dois rostos capazes de nos oferecer água.

bso Precious by Depeche Mode

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

this is not a love song


Perante a fotografia de um rosto que há muito não vemos, a memória dá um salto hípico para trás e, num soluço apenas, lembramos em simultâneo a doçura e a dor trocadas. Pergunto-me onde e entre que gente andarás, se ainda sonhas com as mesmas coisas, se ouves a mesma música inaudível, se ainda escreves cartas à mão e se ainda tens o mesmo humor cáustico com que disfarçavas a sensibilidade e me desarmavas. Ou, se por outro lado, soçobraste e deixas que a vida te passe ao lado, como eu faço. Agora já crescemos e eu já sou capaz de entender o perdão. Quem dera ver-te e gostarmos outra vez um do outro.

bso tema título deste post by Pill

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

restos


E se tudo começasse a acontecer no sentido da perenidade e houvesse realmente um para sempre? Afligir-nos-ia mais do que esta sensação de queda a que já nos habituámos? Somos folhas caducas da árvore ancestral que não nos quer mais depois de alimentada e rejuvenescida. No fim, somos o tapete orgânico que cobre os caminhos e esconde as brechas da terra abertas pelo calor do verão.

bso Falling angel by Waldek

domingo, 8 de fevereiro de 2009

iniquidade


Um dia desato por fim estes fios já lassos que me ligam à tristeza e ao fracasso. Um dia fecho todas as portas de vez e encosto-lhes objectos pesados para reforçar a defesa. Um dia deixo de falar porque as palavras são excessivas. Um dia deixo de acordar com a ansiedade a gritar por mim. Um dia deixo de caminhar sobre o chão que insistem em tirar-me. Um dia ganho asas.

bso Dirge by Death in Vegas

sábado, 7 de fevereiro de 2009

you only live twice


Pediram-me hoje que enumerasse as razões do amor. São muitas, as óbvias, físicas ou espirituais, românticas ou carnais. Mas a verdadeira razão é só uma: ama-se porque se amou antes. Porque se experimentou a parte luminosa da vida e quer-se voltar sempre. Como um vampiro nostálgico do sol. O amor não morre. Só morrendo uma segunda morte e tal não é possível.

bso This love by Craig Armstrong & Liz Fraser

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

terra prometida


Traz a boca cheia de histórias e os gestos animados por uma alegria que não sente. Não sabe que as bolsas debaixo dos seus olhos denunciam as lágrimas adiadas. A esperança não passa de um desejo mudo, uma promessa afónica.

bso Mysteries by Beth Gibbons

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

from nature with love


Afastamos o essencial como coisa fútil. Todos fomos ciganos antes de nos rodearmos de paredes e plantarmos a primeira horta. Aprendemos a nadar antes do medo da água, a sermos iguais antes de aprender o prazer de domar. O desejo é-nos instilado antes de percebermos o corpo, o sonho antes da imaginação. Da natureza que já não nos compreende sobra-nos a memória dos espaços e do tempo nómada e os sons primordiais.

bso Ederlezi by Goran Bregovic

imprecisa melancolia


Deveria ter feito da minha música um amor mais silencioso
como se de uma arte se tratasse.

A ti, a quem falo de poesia, a ti
que assistes ao desenrolar de qualquer coisa que não compreendes,
respondo-te que também eu não compreendo,
que não há que compreender,
porque nada nos condena à fala
antes que as palavras aconteçam.

Por exemplo, esse poema começado numa manhã de Junho
e nunca terminado: um principio de verão,
a janela que dá para o alcatrão sem tráfego serpenteando pelas colinas.
A rua de dia de semana
e o arquipélago da solidão despertando
para as poucas coisas que procuro
e que o poema irá entretecer
se entretecer.

A virtude que, cega,
vai conhecendo o seu caminho.
Desprende-se um fio luminoso da impossibilidade das palavras,
e se ficamos tristes não era para ficarmos,
pois não existem momentos irrepetíveis.
Eles aninham-se no sangue
e voltam a mergulhar-nos na experiencia:
Um dia de verão, um bosque, colinas
onde a serpente de alcatrão se enrola.
a ausência de tráfego como motivo.

A pouco e pouco vou recuperando a gravura.
Agora sei que havia uma ave sobre as colinas,
pois há sempre uma ave, ou sombra dela,
nos meus poemas. Que havia água,
o cheiro das inusitadas chuvas
pela manhã de Junho.
O rumor da imagem colado aos dedos.

O ocre escuro das areias espalhado na mesa
é um símbolo da infância,
mas não o reconheço ainda.
O poema é a enumeração que não teve lugar,
que nunca terá. Eu, à beira do fracasso,
não o reconheço ainda.

Enquanto isso tem lugar em mim o advento
do que me define,
e o barro de que sou feito coze por dentro


luís quintais

bso Sacrifice by Lisa Gerrard

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

blá blá blá


A existir um lado divertido na insanidade dita ligeira é o falarmos sozinhos. Em monólogo, fazendo duas vozes de um diálogo intenso, ou mesmo o coro de uma batalha verbal. E sermos apanhados. O mundo a fingir não deveria envergonhar-nos.

bso Speaking in tongues by Sheila Chandra

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

mens sana?


Boas notícias. O náufrago ainda sabe nadar. E tem companhia na tortura pelo bem estar físico. Se é que o sacrifício alheio suaviza o nosso. Mas as tropas estão moralizadas e avançam com optimismo para a frente de batalha, prontas a aniquilar o exército de adiposidades inimigo e a sua bateria de dores e mazelas. So help me God.

bso Underwater love by Smoke city

domingo, 1 de fevereiro de 2009

atrevida


Por vezes, tu, minha vida de merda, pões a minha capacidade de actuação à prova e lanças-me às feras. Desengana-te, menina, os tempos do circo romano já eram. O papel de Salomé é meu e sou eu quem exige cabeças em bandeja de prata.

bso Ophelia by Natalie Merchant