sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
janela indiscreta
Todo o dia vi chover através de um vidro partido. A fractura trouxe-me à cabeça o de sempre. Peças separadas que nunca voltarão a experimentar a perfeição do encaixe. A dispersão destrutiva em vez da trajectória sem acidentes para um centro vital. A fuga a repudiar a pertença. Quando chove, as minhas inquietações são uma represa sem dique e o que tenho de mais subterrâneo alaga e transborda.
bso Out to get you by James
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1 dia de merda
segunda-feira, 26 de janeiro de 2009
there´s murder in your eyes
Amor e ódio podem caminhar juntos uma vida inteira, de mão dada, dois irmãos em animada cooperativa numa demanda comum: o vislumbre de salvação a que julgamos ter direito pelo simples facto de existirmos. Mas no dia em que o parceiro dá um passo maior e o campo de batalha se abre, um deles torna-se fratricida. Toda a aliança é uma ruína adiada.
bso Murder in your eyes by Element of Crime
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1 crime
sábado, 24 de janeiro de 2009
de boca bem aberta
labareda à beira mar
Na praia do Forte Aguada, em Goa, num fim de tarde de Abril, resolvemos abrir sobre a areia o sari gigante comprado nesse dia no magnífico mercado empoeirado. Distanciávamo-nos para que o tecido pudesse abrir-se na sua estridência de cor. Congelei esse instante na memória, dizendo para mim mesma, baixinho, que me lembraria daquele frame toda a vida. E é verdade, acompanhar-me-á sempre. Cansado de ser, o dia abdicou finalmente em favor de uma luz espectral, aguardando que a noite estrelada tomasse posse. Ali não há lugar para o pôr-do-sol postiço dos postais turísticos. Os nossos corpos eram figuras recortadas sobre o fundo das águas do mar arábico. Supremo décor. E o tecido incendiava a cena. Tu, meu amigo, já morreste e fizeste de mim a única herdeira deste minúsculo, mas poderoso, património pictórico. Quando chegar a minha vez, quero que me enrolem nesse sari vermelho e laranja. Na morte, por fim, permitir-me-ei alguma extravagância.
bso Thank you by Alanis Morrisette
sexta-feira, 23 de janeiro de 2009
guerrilha urbana
Quando a esmola é demasiada, o cego desconfia. Que é como quem pergunta: o que está por detrás do untuoso gesto? A minha visão é mais bélica. Não há nada como a precaução: depois de um clarão de luz, segue-se invariavelmente o raide das explosões.
bso Crush by Garbage
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1 cuidado
quinta-feira, 22 de janeiro de 2009
segredos de alcova
Pela noite dentro, enquanto o mundo dorme, sentimo-nos mais livres e as nossas culpas mais aliviadas. Ou será exactamente o contrário? A verdade é que sabemos desde crianças que a bela e o monstro partilham o leito.
bso The ambitions are by Golden Palominos
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1 história
num país perdido
Hoje viajo menos. E tem pouco a ver com impedimentos financeiros, exigências do trabalho ou outros óbices. Faço outros circuitos, outras circumnavegações. De nada vale andar a correr o mundo quando somos um cepo que não absorve nada. Aprende-se muito quando nos quedamos no silêncio e viramos os olhos para o essencial. Como em tudo o resto, não me interessa acumular sem proveito. Nem sempre a soma é acrescento. Para além de que é preciso também recordar o que já se viu, relembrar a terra, a lama, o pó que os nossos pés já pisaram, realimentarmo-nos com o que já fomos. O que trago dentro da cabeça daria, pelo menos, para três gerações inteiras. Com esperança média de vida de país desenvolvido, mas qualidade de vida do hemisfério sul. Pois a minha cabeça é o caos, um mercado asiático a céu aberto.
bso Song for the siren by This Mortal Coil
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1 meditação
terça-feira, 20 de janeiro de 2009
quem conta um conto
segunda-feira, 19 de janeiro de 2009
nada contra a chuva
Terrível manhã de segunda-feira, a abrir com uma chuva que me encharca até aos ossos. Isso faz nascer em mim, no entanto, a vontade de acordar, como uma raiz adormecida que há muito espera água, um estado próximo da raiva que me faz formigar os membros e agir. Começasse hoje a chover para sempre, como na história mágica de Cem Anos de Solidão e, quem sabe, eu não despertaria de vez deste modo insone, deste torpor? A natureza renasce depois da monção, limpa.
bso Eden by Hooverphonic
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1 dia cinzento
epitáfio
Opto pelo silêncio por saber que ele nada acrescenta e que assim não se poderá virar contra nós. Quando não damos voz às palavras, elas não nos traem. Náufraga demente. Por teimosia, deixas-te, uma vez mais, vir morrer à praia. Alguém limpará o escolho e não deixará flores no seu lugar.
bso The adversary by Crime & the City Solution
domingo, 18 de janeiro de 2009
in & out
Enganas-te. Claro que se pode adiar uma promessa. A lista de desculpas é extensa e imaginativa. Como outro compromisso qualquer. A emoção é um acessório démodé, pelo que eu estou completamente por fora das novas tendências. Antiquada! Pirosa! A partir de hoje, imponho a lei marcial ao meu coração. Recolher obrigatório depois das 20.30. Arriscar sair só em situações de emergência.
bso Mad world by Tears for Fears
sábado, 17 de janeiro de 2009
plasticidade
sexta-feira, 16 de janeiro de 2009
pela hora espanhola
O Francisco é madrileno. Actor, tem a postura corporal disso mesmo. Veio para Lisboa com a família e abriu La Hora Española. Acolhe quem entra como se estivessemos em casa. Não na sua casa, pois ser-se anfitrião é pouco. Numa casa grande, mediterrânica, caribenha, de todos. "Eu cuido de ti", disse. Deu-me de comer. Deliciosos fumados, queijo, pão directo do forno, tomate e abacate - isto podia ser, por si só, ascetismo gastronómico. Fez-me pagar muito menos pelo vinho que eu bebi a mais. E como eu tinha sede nesse dia! Depois, e porque a generosidade, quando é à séria, não sabe conter-se, ofereceu-me ainda uma moldura de madeira velha que eu namorei, uma fabulosa forma grande, sem nada lá dentro, o vazio de todas as possibilidades. O contorno ideal para uma das minhas novas imagens, agora que decidi reincidir no vício da fotografia. Un regalo, palavras a acompanhar o gesto. Para uma amizade que agora começa. O nosso fuso horário há muito que é o mesmo de Espanha, mas o fuso emocional não é, Francisco. Encantada.
bso Los peces by Llhasa
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1 afecto
quinta-feira, 15 de janeiro de 2009
quarta-feira, 14 de janeiro de 2009
tu, cidade
Varanda sobre o rio. O aroma do malte que tenho na mão alimenta-me as esponjas ávidas que são os meus sentidos. Líquido quente que me conforta até o frio afiado deixar de me morder a carne. As estrelas brilham pouco, por capricho. Como as mulheres discretas, que julgam ser mais apreciadas. Dentro, o loop da música insiste em debitar informação redundante: "a minha alma e o teu coração são mundos separados". Sim, como religiões irreconciliáveis, parentes desavindos, clubes em competição. Olho-a do cimo, e a cidade treme apenas o suficiente para se fazer sentir e é um animal que exala a respiração suave de um sono em cativeiro. Prepara-se para recuperar a sua natureza selvagem à primeira luz da aurora. Nessa altura, afirmar-se-á, reiniciando o eterno ciclo de todas as manhãs do mundo, como a predadora impiedosa que é, abocanhando-nos os sonhos que noites como esta nos permitem. E eu recorro à prerrogativa e lanço a questão. Porque me deixaste, deste lado desta cidade que partilhamos sem nunca nos vermos, para sempre? Esta não é a nossa cidade, tu sabes. A nossa é a dos tufões, aquela que não conseguimos olvidar. E eu sou aquela que para lá foge, sempre que pode, para visitar-nos e levar-nos presentes.
bso Me quedo contigo por Ana D
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1 noite ao relento
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
toccata e fuga
Os olhares cruzam-se, há encontrões no meio da multidão, os braços roçam-se na exiguidade dos lugares da cidade, as palavras trocam-se sob a banalidade das fórmulas. As mãos apertam-se e os rostos beijam-se dentro da moldura do que é obrigatório. Mas nenhuma, nenhuma vida se toca.
bso The blowman's daughter by Damien Rice
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1 cidade
quarta-feira, 7 de janeiro de 2009
elogio do redondo
Gosto de volutas, linhas ondulantes e formas arredondadas. Bonecas de cara bolachuda. Conduzir um carocha. Molduras ovais. A elipse do sol. Frascos e jarras bojudos. Velas cilíndricas. Incensos em espiral. Colunas gregas. O mistério que encerra o símbolo da serpente a morder a própria cauda. Um copo cintilante de vinho. Seixos. Pérolas. Pedras preciosas talhadas na suavidade das curvas. Rebuçados bola de neve. Estradas sinuosas. Anéis e pulseiras que se acomodam à pele. O símbolo japonês do vazio. Uma bóia como metáfora da salvação. O chão circular de uma tenda de circo, lugar de sonhos e pesadelos. O comprimido que alivia. A colher, um dos primeiros instrumentos ao qual reconhecemos utilidade. Um balão de puro malte. As formas femininas de um violoncelo. CD´s e DVD´s. A música das esferas. Pena os livros não serem redondos. Latas de chá. Antigos relógios de antigas gares, quando as horas eram suaves e menos angulosas. A lente de uma máquina fotográfica. A maçã da discórdia ou da sabedoria. O facto de a terra ser redonda e girar sobre si mesma, como um dançarino derviche em câmara lenta. A redundância infantil e ternurenta de algumas conversas. Os círculos do Inferno de Dante. As vaidosas argolas de fumo dos primeiros cigarros. O casco de madeira dos barcos. As cúpulas esmagadoras das basílicas. Os minaretes da Mesquita Azul. Lâmpadas de luz quente. Flores em botão. As escadas em caracol das torres de Notre Dame. O Templo do Céu de Pequim. Até as mulheres das pinturas de Rubens. No meu caso, é pena, gostava de ter menos rotundidades e mais arestas. Apesar de tudo, sou produto do meu tempo.
bso Nadia by Nitin Sawhney & Reena Bhardwaj
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