sexta-feira, 26 de setembro de 2008

testemunho


Saudades dos jogos de criança, que nos iludiam deixando-nos felizes. Os jogos de adulto são jogos de mentiras. Elaborados, sim, mas não nos alegram nem nos estimulam a inteligência. Embrutecem-nos. Já não se trata do divertido e generoso equilíbrio do ora-ganhas-tu-ora-ganho-eu. Agora, o derrotado é sempre diminuído, despojado das suas qualidades, adjectivado de forma pouco simpática. E o vencedor... bom, o vencedor é sempre o vencedor, regozijando-se na sua prepotência, abusando da pequena parcela de poder que lhe cabe em mãos. Os jogos de adulto humilham. A mentira humilha-nos. Como acreditar? E em quê? Qual é o meio termo entre a descrença e a credulidade? Onde pára a verdade? No fundo tudo se resume a uma questão: "Quem testemunha pela testemunha?" (Paul Célan).

bso The truth by Handsome Boy Modelling School

terça-feira, 16 de setembro de 2008

pela metade


Apesar de querermos ser inteiros, nunca somos mais do que uma metade de qualquer coisa. A maior parte das vezes, uma metade torta, torpe, enviesada. São patéticas as nossas tentativas de sermos tudo ao mesmo tempo. Incorremos constantemente no erro de reduzir o nosso olhar a um preto e branco estanque, esquecendo-nos das infinitas zonas de lusco-fusco, semi-obcuridade, média luz. E as cores?... Ahh, as cores...
Não há equilíbrio, não há balanço, não há igualdade. Deixemo-nos de infantilidades.

bso Dante's prayer by Loreena Mckennit

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

onde?


Em cerca de três décadas e meia, vivi já em mais de vinte casas diferentes. Diferentes foram sendo os países, os locais, os motivos da mudança e as próprias casas em si. Partilhei-as em idades diferentes com a família, os amigos, namorados que iam e vinham, depois novamente a família, novamente os amigos, vivi sozinha e depois os companheiros. Não casei, não caso. Certamente não casarei. Não tenho muitas raízes. A algumas casas fui capaz de chamar mais casa do que a outras, numas senti-me melhor, noutras pior. Nunca me apeguei demasiado a nenhuma. Talvez porque saiba que uma nova mudança ocorrerá sempre em breve. A contradição é que eu gosto de voltar para casa ao fim do dia. Gosto de estar em casa, recolhida, protegida. E anseio pela casa a que chamarei finalmente minha e na qual possa fixar-me como sempre desejei. E não volatilizar-me como acontece sempre. Para combater este sentimento de não pertencer a nenhuma casa, sempre me fiz rodear de uma quantidade absurda de objectos pessoais, trazidos de viagens, comprados por ímpeto, oferecidos. O que equivale a dizer que as minhas mudanças são sempre pesadas e demoradas, mas também que esses objectos materiais e mundanos são o sentido de lar que me resta. Esta semana fiz mais uma mudança. Para lado nenhum ainda. Deixei uma casa cujas paredes coloridas reflectiam todos os dias e a todas as horas um miasma de infelicidade e frustração. E, por enquanto, gozo o limbo de não estar em lado nenhum e trazer a vida dentro de caixotes. Sinto-me livre, mas muito, muito em breve encontrarei uma nova casa. Talvez não seja a definitiva, mas será, tenho a certeza, a mais feliz de todas.

bso Home is in your head by His name is Alive

terça-feira, 2 de setembro de 2008

entre 4 paredes


De volta ao trabalho. O lugar onde às vez somos outros e por vezes conseguimos ser nós próprios. O lugar do tédio mas também o lugar do entusiasmo. Horas de camaradagem desejada e as outras em que já não podemos ver ninguém. O espaço das ideias nos dias bons e das frustrações nos dias maus. Os sorrisos que fazemos questão de mostrar e o choro que escondemos atrás de portas fechadas. Ritmos calmos e ritmos frenéticos. Caras que passam todos os dias e que gostamos sempre de rever, outras de que sentimos a falta. Desejo irrepremível de descanso e férias e o regresso bom, quando reconhecemos o cheiro das paredes. Dia após dia, o trabalho é assim: inquietação, como em tudo o resto.

bso Lazy by Love and Rockets

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

tempo


No engenho mecânico da ansiedade, cada segundo é eterno, é mais do que a vida que nos resta, é mais do que o ar que ainda podemos respirar, é mais do que qualquer coisa insignificante que possamos ainda dizer ou fazer. E há tanta coisa ainda para dizer ou fazer quando a vida nos vira as costas e desata a correr, virando-se de vez em quando para trás para dizer-nos: “Anda, vá, vê lá se me apanhas”. O que me sobra do tempo é isto, a expectativa de saber se o tempo, para mim, passou ou não.

bso Did I imagine you? by Dot Allison

fuga


Sento-me calmamente, de frente para o meu passado. "Precisamos de terminar a nossa conversa", digo-lhe. "Temos de pôr fim a este ajuste de contas que trazemos pendente há já algum tempo". A princípio, aflito como uma criança que fez asneira, vai-me ouvindo. Culpo-o, recrimino-o, ameaço castigá-lo. Aí, humilhado pela minha zanga, adopta a arrogância e a malvadez do patife apanhado em flagrante. "Basta!", grito-lhe. Assustado, foge. O meu passado é um desertor. E eu, como um guarda prisional complacente, permito-lhe a fuga, não dou o alarme e, por entre um sorriso, agradeço secretamente o que fez pela minha vida.

bso Running to stand still by U2