sexta-feira, 28 de novembro de 2008

a troca


Há, no trânsito, imagens que abalam a minha patética consciência burguesa. Não me refiro à fauna por detrás dos volantes, animais selvagens no cativeiro breve do habitáculo. Falo de quem, por entre os veículos, bate nos vidros para tentar vender qualquer coisa singela. Na tarde de chuva, hoje, um velho deslizava, como a sua vida fugidia, de faixa para faixa, debaixo de um guarda-chuva murcho pelas varetas partidas. Trazia na mão saquinhos de biscoitos e tentava a sua sorte: aliciaria alguém o suficiente para que abrisse a janela ao frio e, ali, no instante de um sinal vermelho, efectuasse a modesta troca? Biscoitos por moedas. Farinha, ovo, açúcar e o metal de sempre. Não acredito em anjos, mas de vez em quando gostava que um deles se fizesse à estrada para tarefas menos divinas, como abraçar quem tem fome e frio e medo.

bso Calling all Angels by Jane Siberry with k.d. Lang

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

da ausência


Há um rio de nove anos que desagua hoje na minha dor de sempre, oceânica. Há nove anos, na nascente, perdi pela primeira vez para a vida. Ou para a morte, com mais rigor. Experimentei pela primeira vez a sensação do nunca mais. Nada nos deixa mais impotentes, nada nos ridiculariza tanto. Como a dor faz de nós burros, nada soube então. Neste tempo, fui aprendendo a tua perda. E com ela, aprendendo outras, relativizando-as, perspectivando-as. Hoje, na foz desse rio, dou mais importância a este dia do que é normal. Deve ser por causa do somatório, do cúmulo de knock outs sofridos neste ringue cheio de lugares vazios que são os meus dias. Faz hoje nove anos que te foste. Daqui a três dias celebra-se outro aniversário, como sabes, no qual eu devia festejar a vida. Ainda bem que não estás para não veres como me desmorono. Para não veres o cansaço e o desamparo que são hoje o meu único cenário e do qual também te culpo. Levantarei um copo aos meus 35, sim, mas por vício, não por querer elevar o espírito ao festejo. E lembrar-me-ei de ti, acusando-te da tua quota de asneiras no molde torto da pessoa que sou, proferindo entre dentes as exclamações revoltadas que te faziam explodir e que hoje poderia gritar à vontade por já não poderes ouvi-las. Descansa, hoje são apenas reminiscências. Hoje já não estou contra ti, embora trave contigo, todos os dias, uma batalha ao espelho. É que ninguém quer ver um pai em si. E lembrar-me-ei de ti, acarinhando as memórias gratas que, estou certa, também te encheram o coração até ao teu último minuto de consciência. Trago em mim também o teu lado bom e só isso me trava hoje a vontade de me abandonar às lágrimas. E guardo tudo porque não é possível esquecer. Quero-te como te quis em vida. Tranquilo. E quente. Porque nos meus sonhos e pesadelos estás sempre perdido e com frio. Aceita, pois, hoje, o conforto do meu afecto e a manta de retalhos das minhas palavras. Eu prometo, um dia, aceitar que morreste.

bso Bliss by Tori Amos

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

prenúncio


Quando os homens falam do futuro, os corvos, lá em cima, riem-se.

bso Want by Recoil

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

em palco


Conversa em cenário escarlate:

“Aproxima-te. Mal posso esperar que este espaço entre nós se encha de carícias que separem as águas do mar da minha pele.”
“Que palavras de assombro! Que olhar, esse! Caminho para ti e o amor cresce. Estes passos são já gestos prenhes de intenções”.
“Que bom é tocar-te. Abraça-me. Liberta-me desta mortalidade. Este amor instila em nós o sopro de uma raça divina. Poderosa, imensa. Que os deuses nos perdoem por assim os humilharmos na sua inutilidade”.
“Que vontade de pecar! Se os deuses se sentirem ofendidos com este amor terreno e carnal, preparam certamente a nossa punição e ela será terrível!”
“ Ou então, orgulhosos destes dois mortais que ambicionam igualá-los, conceder-nos-ão a graça de viver em pleno pela vida fora".
"Nada receemos. E não permitamos que estes pensamentos nos ensombrem o desejo. Esta é a hora em que somos criaturas sem criador”.

bso The dancer by PJ Harvey

terça-feira, 11 de novembro de 2008

where is my mind?


Quando a mente emperra, não há lubrificante, natural ou industrial, que nos valha. Sentir uma ideia presa entre a porta e a ombreira, nem para lá nem para cá, por mais empenho que ponhamos em transpô-la, deixa-nos com um sentido de frustração pueril. Como se do outro lado de uma ideia que consegue tomar forma, após aturado e conseguido raciocínio, estivesse uma revelação, um dado novo, que nos transforma e transforma as coisas à nossa volta. Se, pelo contrário, o que acontece é ficarmos irremediavelmente do lado de fora, passamos a ser um saco vazio, um recipiente sem utilidade, um continente sem conteúdo. Como a criança que somos, escorregamos pela parede abaixo até ao chão que nos acolhe. Abraçamos as pernas e aguardamos, com toda a esperança que a vida ainda não nos tirou, que a porta acabe, generosamente, por abrir-se. Recusamos, claro, com veemência, espreitar pelo buraco da fechadura. Não somos dados a visões parciais e não nos agrada vislumbrar apenas uma porção do caminho. Gostamos de paisagens imensas, ecrãs gigantes e telas despudoradamente grandes. Esperamos. A mente é um enorme balão vazio, daqueles que têm rostos patéticos pintados, e não pertence ao corpo ali largado. Só queremos uma chama, uma pequena luz que seguiremos até conseguir fazer de tudo o que se encontra aninhado nas fendas, reentrâncias e dobras das nossas consciências algo de bom, de novo, que sirva. O fundador de uma ideia pode ou não ter orgulho nela, mas colhe depois de semear. Não importa se a sementeira foi organizada, metódica, levada a cabo na estação certa, ou se foi bravia, trazida pelo acaso dos ventos. Quero que a minha cabeça seja uma seara dourada.

bso tema título deste post by Pixies

domingo, 9 de novembro de 2008

a sôfrega hidra


A dada altura da nossa vida, nós, mulheres, por cumprirmos o receituário atávico de asneiras e precipitações que Deus nos prescreveu, somos apodadas de hidras. É óbvio que o piropo tem de partir de alguém que sabe do que está a falar, tem umas luzes sobre mitologia, já ouviu falar nos doze trabalhos de Hércules, pelo menos na versão em celulóide, e tem a cabeça suficientemente retorcida para fazer analogias entre feras escondidas em covis, prontas a estraçalhar quem se lhes atravessa à frente, e seres cheios de estrogéneo à beira de um ataque de nervos. Sim, recentemente também fui brindada com o rótulo. Olhem, gostei. O insulto é, normalmente, desconhecedor de limites e tem uma imagética capaz de fazer tremer o mais estóico. Logo, podia ser pior.

bso Heroes by David Bowie

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

má construção


Se o mundo é obra de Deus, então Deus é um pato bravo. E dos aldrabões. A obra não deveria ter sido licenciada, desde já pelos erros crassos revelados pelos projectos de engenharia e arquitectura logo à partida. Mas Deus tem conhecimentos e cultiva a troca de favores. Na certeza de não ser embargada, cedo a obra começou a mostrar as suas fragilidades: fundações erguidas sobre solo arenoso, mau cimento, a canalização e a instalação eléctrica a denunciarem a utilização de material de quinta categoria. Acabamentos manhosos. Trabalhadores descontentes com a cruel chefia, perita em minar qualquer iniciativa ou camaradagem. E, claro, o mau gosto desconcertante de quem pauta a vida pelas aparências. As fracções vendem-se bem, apesar de tudo. A verdade é que todos querem um lugar no mundo e os tempos não estão para grandes exigências. De vez em quando, esta obra e o personagem caricato que a pensou são notícia de primeira página, quer nos jornais de referência, quer nas revistas cor de rosa. Escândalos financeiros, rumores de homossexualidade, permanente ameaça de implosão por parte das autoridades competentes com vista a cumprir as novas leis de preservação paisagística e outras manchetes bombásticas. Mas nada acontece. O mundo veio para ficar. E nós, inquilinos titubeantes ou proprietários claudicantes, reclamamos, mas engolimos. E todos os meses, impreterivelmente, pagamos o condomínio.

bso Monkey gone to heaven by Pixies

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

a besta em nós


Nem todos os dias são dias de discursos prolixos. Hoje fico-me pela simplicidade de duas ou três observações. De cabelos em pé. Na boca do lobo. À espera de ser o repasto do dia ou negar-me à condição de presa. Correndo, correndo sempre.

bso Society by Eddie Veder

sábado, 1 de novembro de 2008

não há amor sem ciúme?


Ao contrário do que muito se pensa, o ciúme não é lisonjeador. Ofende porque desacredita. Desiquilibra porque duvida. Amedronta porque agride. Estupidifica porque se repete. Tolhe porque sufoca. Cansa porque exige energia. Seca porque é improdutivo. Estagna porque é inconsequente. Insulta porque não precisa de palavras. Gesticula por não ter razão. Insinua-se melifluamente porque é dissimulado. Tem uma vida secreta, a que germina sob a atenção e os cuidados. Arrasa porque coloca tudo em causa. Distorce, enviesa, transforma. Incapacita e aprisiona. O ciúme não ama, não quer bem. O ciúme toca e estraga. Midas ao contrário. O ciúme é posse, é propriedade, é manutenção de status quo. O ciúme é poder nas mãos de quem não o sabe usar. O ciúme é desajeitado e incompetente. É o pior cego porque não quer ver para além de si. Ao contrário dos anjos, o ciúme tem sexo. É mulher. Uma mulher que não sabe o chão que pisa. Os homens também sentem o ciúme. É o seu lado feminino. A evolução não olvida o instinto. O ciúme também tem forma. É um bicho roxo, tentacular, de apetite voraz. Uma besta bem alimentada que veste cores de tragédia. Tem dentes cortantes e engole sem mastigar. Rói até ao osso limpo. Por fim, porque reduzir a nada é o seu limite, dos ossos faz cinzas. O ciúme não é uma fénix. Não renasce e não reinicia. O ciúme não se deixa matar, não é uma espécie em vias de extinção. O ciúme é extinção. O ciúme é a humanidade a debruçar-se sobre o abismo das suas ambições e contradições e a cruzar os braços perante a inevitabilidade do pior. O ciúme é caos e não cosmos. O ciúme nega qualquer possibilidade de elevação e redenção. O ciúme reduz-nos à nossa biologia. O ciúme é carne. A passar do prazo de validade, a intentar contra a nossa integridade física, depois de destruir a moral. O ciúme não é contra a religião. O ciúme é religião, pode dar sentido a uma vida. Tem dogmas, molda comportamentos, tem ritual. E pode matar, como as religiões. Consome tudo. E por poder ser maior do que tudo, consome e esgota até as palavras que o descrevem, impondo ao discurso um intransponível ponto final.

bso Buried bones by Tindersticks