sábado, 2 de maio de 2009

sem o instinto do ninho


Logo pela manhã, no trajecto de uma hora de autocarro, ouço uma sucessão de telefonemas da passageira sentada atrás de mim. Sem sequer lhe ver o rosto, percebo os contornos da sua vida e consigo fazer-lhe o esboço. Chamada de trabalho: palavras como relatório, auditoria, despesa elegível ou ofício arrancam-me à força do congelamento do sono; chamada da dona de casa, combinando arrumações e arranjos com a mulher-a-dias; chamada da esposa que acerta com o marido detalhes da mudança de casa agendada para o fim de semana seguinte; chamadas da mãe, uma para a educadora do filho, partilhando a preocupação dos efeitos da mudança de casa na criança e outra para a mãe de um amiguinho combinando uma festa de aniversário; chamada da mulher vaidosa e mundana para a loja onde deixou encomendado um vestido que ficou a apertar; chamada da mulher saudável para a sua médica, prometendo que lhe levará com a maior brevidade possível os resultados dos exames para analisar e agradecendo-lhe a dieta prescrita, cujos resultados são bastante satisfatórios e visíveis; chamada da filha, que aconselha o pai a não se deixar abater só porque descobriu que tem bicos de papagaio; chamada da colega solícita, que marca uma mesa num restaurante para a despedida de um colega de trabalho; de seguida, mais umas quantas chamadas para tentar harmonizar as contribuições para a prenda conjunta a oferecer ao demissionário. A viagem acaba e a mulher continua ao telefone. Levantando-me, posso agora olhá-la: deverá ter a minha idade. Sai à minha frente em passo apressado e eu vejo-a afastar-se gesticulando. A única coisa que consegui pensar durante todo aquele tempo, na antecâmara da minha entrada diária no mundo, foi que teria sido muito bom não me ter levantado tão cedo. Ou que mataria por um café.

bso Family tree by TV on the Radio

Nenhum comentário: