quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

ab dementia


Desde criança que tenho um fascínio sobre o personagem arquetípico presente em inúmeras histórias e habitualmente porta-voz de uma moral duvidosa: a louca da aldeia. O meu interesse começa pelo entendimento do desamparo desta mulher. Pela intuição do seu desespero. Pelo reconhecimento da irreversibilidade das coisas. E pela sensação de catástrofe iminente que paira sobre a sua cabeça desgrenhada. A louca da aldeia é um ser vazio, despojado do Bem e do Belo. Não reconhece tempo algum senão o da ausência da mente, no qual ocorrem todos os devaneios. Não reconhece o espaço para além daquele que lhe é dado, por compaixão dos habitantes locais, para arrastar as suas misérias. O que resta nela é o instinto: o da sobrevivência e o da maldade pueril. Alimenta-se de restos e alimenta-se de vidas alheias. A sua vida não chega porque a sua vida é nada. A louca da aldeia também foi jovem, não há muito tempo. Era mestre-escola, moldava cabecinhas para o futuro da povoação. Chegou mesmo a publicar um pequeno opúsculo com o fruto da sua experiência. “Da Educação: Crescer para Fingir”. Casou, mas tinha o ventre seco. As suas desgraças começaram quando o marido fugiu com a cartomante de uma trupe maltrapilha de circo que por ali passou. Um dia foi vista a deixar a escola e os meninos para trás, gritando desvairadamente e insultando quem se lhe cruzava no caminho. Arregaçava as saias sem pudor e oferecia-se aos lavradores que, atónitos, terminavam mais uma jornada de trabalho. Foi-se-lhe o tino. Começou então a exercer a pequena tirania dos que perderam as barreiras do senso. Invadia cada quintal, cada casa, cada vida, pondo-se à espreita como uma fera esfaimada, indo depois berrar aos quatro ventos as intimidades de cada um, não iludindo a sua própria promiscuidade. Cuspia impropérios numa linguagem de carroceiro. Olhando-se ao espelho, a louca da aldeia achava-se bonita, pois a demência tolda e é generosa, não a deixando ver a sua derrocada e o seu ar de velha precoce. Como lhe havia ficado o gosto pelo papel impresso, negociou favores sexuais com o latagão aprendiz de tipógrafo, na pocilga das traseiras da oficina, em troca de uns panfletos em papel de refugo no qual vomitava os segredos dos aldeãos e que distribuía em cada casebre com a convicção da palavra final dos falsos profetas. Os seus conterrâneos abanavam a cabeça em desalento, com o mesmo olhar de piedade que lançavam aos animais feridos sem remissão que eram obrigados a abater. “Esta desgraçada não há-de ter bom fim”, vaticinavam. E como o povo é a voz de Deus, um dia a louca foi surpreendida, num dos seus passeios pela mata, por uma alcateia faminta que ali mesmo a devorou de forma a não deixar memória.

bso Crazy by Gnarls Barkley

Nenhum comentário: