sábado, 23 de agosto de 2008

génio


Ao fim de três teimosos posts (ena!), que exigem de mim uma espécie de esforço terapêutico (ena!ena!), chegou a hora de falar do porquê do título deste blog, o que fará deste texto um bloco maior do que os outros. Não apresento as minhas mais sinceras desculpas nem peço a ninguém paciência para o inconveniente pela óbvia falta de plateia. “O náufrago” remete-nos para a imagem de alguém a quem coube em sorte ver-se lançado ao mar, à mercê de águas caprichosas, sem saber se acabará com os pulmões cheios de água (diz quem evidentemente não sabe que é uma morte santa), devorado por um monstro marinho (épico), recolhido pela tripulação de algum barco anjo que calhe em passar (ouvem-se sinos a rebate), atirado para a costa por uma maré redentora (que sorte!... ), mas destinado a viver uma vida de semi-animal a falar sozinho ou com as pedras (shit…). A analogia com a vida é evidente, daí o primeiro momento da minha escolha. Fútil, digamos. Num outro momento, é a minha homenagem à novela “O Náufrago”, de Thomas Bernhard, o austríaco que renegou a sua pátria, autor das minhas preferências negras. Não há motivo para preocupações, o facto nada diz sobre o meu temperamento: também tenho uma lista de autores luminosos. Mais pequenina, é certo. Bernhard dará certamente algumas voltas na tumba sempre que se vê referenciado em conversas amenas desde género, mas confiarei na sua brandura para perdoar-me. Afinal está morto, não é? É certo que neste registo de homenagem poderia ter escolhido qualquer um dos seus outros títulos optimistas como “Perturbação” ou “Extinção”, mas “O Náufrago” é mais consonante com o que vou tendo para dizer. A este propósito, I could kill a hundred times a day just to find something I would really want to say. Vêem, a questão do temperamento?
Enfim, “O Náufrago” de Thomas Bernhard é sobre Glenn Gould. Ou, com maior rigor, sobre um encontro a três: o deste genial pianista com o narrador do livro e a personagem Wertheimer, apelidada de “náufrago”. Todos eles têm o desejo de se tornarem virtuosos do piano, mas apenas um atinge a genialidade. Por causa das Variacões Goldberg de Bach. Quando Wertheimer ouve a execução de Glenn Gould, desiste imediatamente dos seus intentos por perceber que nunca executaria a obra daquela forma sublime. O narrador do livro também desiste e fecha a tampa do piano. Mas é Wertheimer quem entra em processo de naufrágio. Crendo-se sem talento para a música, entrega-se à melancolia. Depois, sem talento para a vida, deixa-se afundar, primeiro em teorizações filosóficas, depois no exercício da tirania sobre quem lhe é próximo. Por fim, suicida-se. Texto sobre a arte, a criação artística, a aniquilação do Bom sobre as pesadas botas do Genial, as consequências banais, mas brutais, da mediocridade e do fracasso, com ele Bernhard semeia-nos na consciência ervas venenosas: o desejo de ser outro destrói o ser humano, a ambição pela perfeição acaba-nos de vez com a pouca tranquilidade e a pouca paz de espírito que alguma vez consigamos alcançar. O mundo está cheio de náufragos e as tábuas de salvação a que podemos lançar a mão são cada vez mais frágeis, escassas e fugidias.

bso We are not stars by Perry Blake

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