quarta-feira, 27 de agosto de 2008

carta de amor


Eram bonitas as cartas de amor que meu pai escrevia a minha mãe nos tempos de namoro. Li-as nas vésperas de um Natal de há muito tempo, quando procurava presentes escondidos. Essa era uma das minhas fantasias infantis, acreditar em surpresas incríveis remetidas ao secretismo dos fundos dos armários. A ansiedade já me segredava, com maldade, que não devemos aguardar quietos o que nos vai caber em sorte, que devemos precipitar os acontecimentos. Mais tarde na vida receberia a lição adulta sobre o tema: os finais não são felizes.
Encontrei a curiosa caixinha de cartão numa gaveta de lenços, tão fora de moda como as cartas de amor. O rebordo dourado chamou-me a atenção. Na tampa um desenho mal impresso de um casal de jovens enamorados, em jeito muito anos 70, abonecado e piroso. Lá dentro, várias folhas de papel colorido dobradas em quatro ou em oito. Cada embrulho, uma carta, palavras novas, sentimentos novos. Hoje, não consigo reproduzir uma única palavra, uma ideia, uma emoção ali impressas. O que retenho, o que me remete para essas cartas, é a sua atmosfera, o mundo próprio que as palavras encadeadas circunscrevem, impermeável. A solidez desse mundo não tem equivalente no exterior.
Cometi a inconfidência de mostrá-las às amigas de então. Porque há uma altura em que, a par de outras grandes verdades, acreditamos nas cumplicidades incorruptíveis e eternas. Ávidas como eu de crescer, satisfiz-lhes também a curiosidade das primeiras descobertas. Partilhámos o espanto e a expectativa. Efabulámos sobre as nossas vidas futuras. A possibilidade estava toda lá. A perfeição estaria lá. A felicidade estaria lá. A beleza estaria lá. E a inocência tinha lugar cativo na fila da frente.
Durante muito tempo, reli essas cartas, até que deixaram de me interessar. Abandonei os refúgios e mais tarde comecei eu própria a escrever as minhas cartas, nem sempre com um objecto de afecto definido, mas também pelo exercício do prazer adolescente que é escrever sobre o amor. E esperava impacientemente que alguém mas escrevesse também. Generosas, contidas, irritantes, ansiosas, raivosas, aborrecidas, nervosas, iradas, dramáticas, suicidas, mas todas essenciais, vitais. Maiores que tudo. Enchendo-me a vida de forma a não caber mais nada. E o nome aposto no fim era o nome do próprio amor. Peremptório e definitivo. Pelo menos até à carta seguinte.
Trocar cartas de amor é trocar corações. A respiração que suspendemos na sua leitura é a nossa alma a desiquilibrar-se à beira do abismo. A boca seca que nos deixa a certeza de sermos amados – pois se o escreveu!... – é o preâmbulo do desejo que nos vai arrebatar. A consumação daquelas palavras marcar-nos-á a pele a ferro e a nossa memória em pânico viajará de volta a elas sempre que a vida nos voltar a tirar o tapete.
A carta de amor que recordo com mais dor, e que encontrei recentemente dentro de um livro do Moravia há muito atirado para as prateleiras de trás, chamava pela minha presença de luz e cor (e hoje sou só sombras!) para manter afastada uma tendência obscura de reclusão e desprendimento de quem a assinava. Faltei a esse encontro. Mais tarde, por razões ainda hoje desconhecidas por todos, o assinante cortava os pulsos no seu apartamento em Lisboa. Para mim, a falta de cartas de amor facilitou-lhe o compadrio com a morte.
Também para mim veio o tempo da condenação. Das desilusões. Trazer o Pessoa na ponta da língua acusando que “todas as cartas de amor são ridículas”. Decretar em todas as conversas de início da idade adulta a morte do romantismo e a imperiosa necessidade da liberdade de movimentos. A autodefesa. A validação social. A negação do lugar do amor, aqui, entre duas pessoas. A negação dos lugares do amor, que são toda a parte.
Perdi-me em amores imerecidos e não mereci nenhum. Ganhei medo à vida, às pessoas, às promessas sem força de lei. Como nos meus terrores nocturnos de criança, sentia permanentemente a absoluta certeza de que algo terrível ia acontecer. Recomecei a procurar refúgios. Fechei-me, pouco a pouco, numa gaiola imaginária. Quase sempre, a prisão conforta-me. Mas, por vezes, atiro-me contra as grades, à procura de uma saída que não estou certa de querer encontrar. Firo-me e saro-me, uma e outra vez, mal me dando conta dos pedaços de mim que vão ficando pelo caminho. Não os recuperarei. Já nem tudo é possível.
Não voltei a ver a caixa das cartas de amor dos meus pais. Nem a procurá-la, por excesso de pudor. Estou certa de que a minha mãe a guarda, sem a emoção de antes, mas com a indiferença terna que prodigalizamos aos objectos que sempre estiveram na nossa vida. Nem me teria lembrado dela se hoje não estivesse triste. Se hoje não estivesse à espera que uma carta de amor me salve da solidão e do tédio. Pode ser anónima.

bso Love letter by Nick Cave

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