terça-feira, 26 de agosto de 2008

fraca mecânica


Houve manhãs em que tive vontade de morrer ao acordar. Morrer mesmo. Não a vontade de morrer que metaforiza a vergonha, a humilhação, a dor da perda, o cansaço do quotidiano. Quis deixar de respirar, deixar os olhos fechar-se sem combater o peso das pálpebras, como quando adormecemos, apagar-me escorregadiamente como a uma luz reguladora, sentir os órgãos vitais pulsar com menos veemência, cada vez mais devagar, como as pás de uma ventoinha que ainda rodam depois de a desligarmos, até à imobilidade total.
Pensava em tudo o que pudesse dar-me alento para me levantar: o anti-depressivo que me esperava todas as manhãs com a sua promessa melíflua de tranquilidade; um café escuro, bem quente, retemperador; qualquer coisa bonita para vestir; a expectativa de encontrar ao espelho, para variar, uma pele lisa e uns olhos brilhantes; um encontro prometedor, uma decisão inadiável, um compromisso inalterável. O trabalho. Não, nem sequer o trabalho. Na mecânica ronceira do desalento, todas as desculpas são possíveis. Do outro lado, alguém tinha a generosidade de acreditar.
Enrolava-me na roupa da cama e procurava o não lugar onde esperamos que o mundo nos esqueça. Tapava a cabeça com o lençol e deixava de fazer parte do mundo. Estava de fora, julgava eu. Só eu. Pateta. Como se eu não fosse mundo também, produto defeituoso dele. Sentia o corpo todo torcido da noite mal dormida num mau colchão, mas os membros doridos não me pediam movimento nem energia. Já os havia domado.
Cerrava os olhos e insistia na redenção do sono. Queria sonhos bons, mas ficaria contente se não os tivesse de todo, se os pesadelos que me carregavam as manhãs e me perseguiam durante o dia não se repetissem. Queria um daqueles sonos da infância cheios de esquecimento. Ocorriam-me imagens como esquecerem-me como a um dobrão de ouro no fundo do mar, resto de um naufrágio sem qualquer registo; dissolver-me como um torrão de açúcar em água morna, turvando-a de doçura, deixando de ser uma coisa para transformar-me em outra; ou acabar comigo como um pássaro que se estraçalha contra o motor de um avião.
O suicídio não foi, no entanto, uma opção. Foi possibilidade, subterfúgio do desespero. Se nada mais resultasse. Por essa altura, o que ia resultando mesmo eram as horas ou os dias, como aqueles, de suspensão. O mundo parava dentro de casa, o tempo não escorregava pelos objectos nem pelas pessoas, o pó não se acumulava, a fome e a sede nada pediam, os ruídos que se faziam sentir eram um coro confortável, a luz não nascia nem se apagava, não havia princípio nem fim de nenhum ciclo. Naquela bolha eu não era nada, não tinha identidade, idade, relações de parentesco, árvore genealógica, papéis a desempenhar, personagens a encarnar, sexualidade, não tinha capacidades nem limitações, direitos ou deveres. Não me era aposto nenhum rótulo. Não tinha gostos, nem vontades, nem cheiros, nem hábitos particulares de higiene. Não tinha armários cheios de roupa, de sapatos, de malas e de outros acessórios, fruto dos meus impulsos mais mundanos. Não tinha uma casa de banho cheia de cremes, perfumes e loções. Não era mulher. Não tinha género. Não tinha corpo e a mente era um grande balão vazio.

Respirava baixinho e decidia: hoje fico na cama a viver em silêncio.

bso Fragile wind by Nitin Sawhney

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