sábado, 30 de agosto de 2008

dias felizes


É ao fim do dia que o autocarro rasga a paisagem urbana com maior violência. Eu estou de fora, com o ruído e o movimento da cidade a abaterem-se sobre mim, e vejo lá dentro os sonhos desfeitos de gente desfeita. O cansaço e a desilusão roubaram-lhes o brilho aos olhos, o fulgor à pele, o viço aos cabelos. Com os pés bem assentes no passeio, pergunto-me quantos daqueles que por aqui passam no seu percurso quotidiano terão já pisado chão diferente deste. Ponho-me a imaginar alguém que folheia uma revista mundana e que apanha aqui e ali as migalhas da improvável vida feliz de um colunável. E finge, pelo curto tempo de um artigo ou de uma pequena história, ser outro. Ponho-me a pressentir o movimento cadenciado de alguém, que por vício ou por não saber que outras coisas mais felizes podem duas mãos fazer, tricota uma peça que não ornamentará nada nem ninguém. E que com esse movimento repetitivo enfurece quem se senta ao seu lado. Depois lembro-me de que todos os outros, os que tiveram a sorte de conseguir um lugar onde antecipar o descanso da noite ou os que ainda terão de arrastar as suas penas de pé, devem permanecer com o olhar parado, no estupor dos descrentes. Ou perscrutam-se na empatia do desespero. Ainda no mesmo sítio, já o autocarro se afasta, divido-me entre a preocupação de não querer ser como esta gente e a improbabilidade de o não ser. Pelo menos hoje estou de fora, no passeio, e posso fechar os olhos e imaginar-me no adro de uma velha igreja, tão cheia de todas as memórias boas e más, afastada no meu espaço e do meu tempo. O vento refresca-me e cola-me os cabelos à cara. O sino da igreja toca e eu sinto-me quase, quase bem. Mesmo os dias maus têm um fim. Atravesso a passadeira para o outro lado da rua, onde te encontrarei. E o nosso abraço será apertado e irá redimir-nos da tristeza que ninguém deveria ter de sofrer.

bso Black water by Rain Tree Crow

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